— Eles estão aqui? — Questionou Érico para Bico, enquanto observava Joaquim ainda imerso em seu sono, livre da dor por enquanto.
"Eles", o conjunto de pessoas que Érico se recusava a nomear um por um, o conjunto de pessoas que haviam sido mortas e que ele não teve a chance de se despedir, tudo acontecera tão rapidamente, eles se foram e ele estava de novo a caminho do perigo. E agora Bico estava com ele, o que tornava tudo ainda mais confuso.
Bico devia estar no palácio, era o que sua mente dizia, contrariada. Ele devia estar com Ari e Chico, com Celina e Martino. Não ali com ele, observando Joaquim. Parecia que um buraco havia se aberto no tempo e tudo estava confuso, misturado de uma forma nada boa.
— Bico... Por que você está aqui? Como chegou aqui?
— Eu sempre estive aqui — revelou —, desde que você fugiu, Érico, eu segui você e eles. Sempre.
A mente de Érico rodou por um momento. Sempre parecia ser tempo demais, ainda se considerasse a todos os perigos a que foram impostos e ele se revelava agora?
Antes que pudesse fazer essa reclamação, Bico continuou falando, sabendo que Érico ansiava por interrompê-lo.
— Quis aparecer, quis mesmo. No começo, não. Com os lobos e sua chegada à Mifram... Quis aparecer quando pensei que precisava de mim no reino, mas você nunca ficava sozinho, estava o tempo todo com eles e... Me senti excluído.
— Eu nem mesmo via você, como pode se sentir excluído? — Érico gritara, tinha certeza disso, acabou abaixando a voz quando percebeu o movimento na cama ao seu lado — O que fez você mudar de ideia, afinal?
— Você. Está mudado. Está mais... feroz. Não de um jeito ruim, eu acho, apenas diferente do garoto que conheci.
Às vezes Érico esquecia-se que a aparência fantasmagórica de Bico era apenas uma ilusão, até mesmo sua forma de criança. Ele era mais velho do que ele e seus companheiros juntos.
— Uma mudança era preciso — murmurou em resposta. Depois de tudo que ele vira, mudar era a única coisa que podia fazer.
— Eles não estão aqui — Bico disse, encarando-o —, seus pais desde que morreram, nunca os senti por perto. Talvez eles... Talvez eles não quisessem voltar ou... Não havia nada que os ligasse aqui. Nenhuma fonte.
— Há eu. Então por que eles não voltaram? — Lágrimas ameaçaram explodir seus olhos. — Arniel morreu, só que eu ainda estou aqui! Eu sou um elo deles.
Bico se limitou apenas a balançar a cabeça, como se dissesse que tê-lo vivo nunca fora um elo suficiente para fazer seus pais retornarem como fantasmas. E aquilo reabriu a ferida que estava na metade do processo para se curar, abriu e a expandiu; a tortura maior era sentir a dor em seu peito e não fazer o mínimo esforço para expulsá-la.
— E Benício? Você o conheceu?
— O observei por um tempo. Ele se foi, Érico.
Dessa vez, não se impediu de chorar.
Ele se foi.
— Ele sabia que morreria, e aceitou isso. Aceitou mesmo.
— Ele morreu... Para que... Para que eu fugisse... — engasgou-se.
Sentiu o toque gélido da mão de Bico sobre seu joelho. Não foi um toque familiar, que o confortasse. Fizera seu corpo inteiro ficar tenso. — Como pude deixar aquilo acontecer? Será que... Que alguma coisa ou alguém... Como eu sobrevivi?
A pergunta era tão boa que ele chegou a rir de sua ironia. Por que logo ele sobrevivera dentre tantas pessoas mais capazes? Seu pai era forte e inteligente, sua mãe era esperta, Benício era ágil e habilidoso com qualquer instrumento que pegasse. E todos estavam mortos. Ele não acreditava que sobreviver tinha algo a ver com sorte. Sorte era uma das palavras que fazia com que se sentisse enjoado, não basearia nada em sorte, porque deixara de acreditar há dias, há momentos.