Capítulo Quarenta e Oito

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Seus olhos abriram-se de repente e ele precisou de alguns segundos para pensar se respirar o machucaria. Sim. Respirar machuca.

— Não tente levantar-se, vai doer mais — a voz infantil de Bico avisou. Sua mente precisou de muitos minutos que quase o fizeram dormir para que se lembrasse do que aconteceu exatamente.

— Quantas pessoas morreram hoje?

— Só nesta embarcação ou no mundo todo?

Lipe fez cara feia para o fantasma, que sorriu para si mesmo. O senso de humor dos fantasmas era assim tão irritante?

— Apenas aquele homem asqueroso que queria jogar as pessoas no mar e, que ironia, ele quem foi parar no mar.

— Isso foi rude — Lipe rebateu, mas desistiu de um sermão quando a criança deu de ombros.

— E aquele mestiço.

— Lembro de você ter lançado uma moça pelos ares.

— É — disse, estufando o peito em orgulho —, eu fiz isso. Agora, fique quieto.

Lipe estava de barriga para baixo na cama, o que o deixava com mais dificuldade de respirar. Bico passava algo em suas costas.

— Está gelado! — Reclamou e se sentiu estremecer.

Após minutos com aquele líquido em suas costas, ele sentiu as partes geladas esquentarem subitamente, mas não era algo ruim, sentia seu corpo todo tremendo de frio por estar sendo tocado por Bico, seus toques eram, na verdade, apenas brisas que faziam seus pelos arrepiarem e toques gelados que mais pareciam o focinho de um cachorro na sua pele. Era desagradável, mas Lipe nunca falaria isso mesmo que esquiasse do toque por instinto.

— Se você é um fantasma você pode aparecer ir de um lugar para outro sempre que quiser?

— Sim.

— E por que não faz isso agora?

— Seria fácil. O problema, menino, é que eu não sei onde estamos. Estamos no mar, mas a qual distância de Sinka e a qual distância de Hend? Poderia voltar para o mar e vocês não estariam mais aqui.

— Não pode só... Pensar em Érico e desejar estar com ele?

Bico ficou calado.

Lipe encarou o lençol puído a frente e decidiu ficar calado, deixaria que Bico terminasse de ajudá-lo com seus ferimentos. Lembrar da sensação do cano da arma em suas costas o deixava nauseado. No momento em que soube o que iria acontecer, foi tarde demais para que tentasse revidar.

— Não consigo ficar perto de alguém só porque desejo — respondeu o fantasma —, isso é fantasia. Você sabia que já tentei? Mas não com Érico. Tentei ir com meu pai a uma viagem porque estava com um pressentimento ruim e desejei ir até onde ele estava, mas nada aconteceu. Meu pai morreu naquela viagem.

— Sinto muito por sua perda. Perder alguém é uma coisa que nos mata também. Pelo menos um pouco. — Lipe deu um sorriso amarelo ao virar o rosto para ver o fantasma. — Você não gosta muito de mim, não é?

— Seu apreço por mim também não parece ser legitimo — rebateu o fantasma, deixando Lipe envergonhado, mas, após um segundo ele percebeu que Bico estava rindo. — Sou inconveniente com pessoas estranhas, a verdade é que eu nunca aprendi a fazer amigos e mesmo depois de morto ainda é difícil. Mais difícil.

— Acho que temos esse aspecto em comum — murmurou contra o lençol, que tinha cheiro de mofo. — Só tenho Érico e Joaquim comigo.

A sensação que se espalhou por seu corpo depois de dizer isso foi incrível. Ele se sentiu relaxado, morno, seu corpo inteiro relaxou e ele percebeu que não era apenas sua imaginação; Bico acabara de tirar a bala de dentro de si e já tinha costurado sua pele, passado uma nova camada daquele líquido quente para deixá-lo melhor.

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora