Capítulo Sessenta e Sete

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Ele precisava de ar. Desesperadamente. Entretanto, esperou que todos se dispersassem para sair da sala e ir em direção às árvores sem folhas, que tinham camadas de neves em seus galhos nodosos. Gostaria de se deitar na neve e esperar uma nevasca chegar para cobri-lo, para ver se conseguia assim, fugir dessa confusão que era sua mente.

As marcas de patas na neve indicavam que Quito foi para o leste, onde havia menos árvores. Talvez ele desejasse voar.

— Eu também queria — murmurou para si mesmo.

Havia esquecido de trazer luvas. Na verdade, não as tinha, mas tentaria encontrar algumas na casa. Agora a ponta dos seus dedos estava branca e eles tremiam.

— Com quem está falando?

Ele não precisou se virar para saber que era, apenas olhou por sobre o ombro e encontrou Cíntia, com um sorriso troto no rosto e o cabelo parecendo um ninho.

— Oi.

— Oi — ela suspirou e ar gelado saiu de seus lábios, que começavam a ficar levemente azuis. — Com quem estava falando?

— Às vezes falo sozinho. Me reconforta, mas prefiro que as pessoas não me escutem. Costumo falar coisas ruins.

— Não contarei para ninguém, eu prometo.

— Confio em você.

Não era difícil para ele dizer tais palavras. Nunca fora, só não tinha muitas pessoas para quem dizê-las. Poderia dizê-las para Cíntia o tempo todo se ela desejasse.

— Obrigada. Por confiar em mim.

Ele mordeu o lábio após dizer "de nada" do modo mais brando que conseguiu. Estava resistindo à vontade de perguntar se ela também confiava nele.

— Alguns deles pediu que você viesse aqui? — Perguntou, ao invés disso.

— Não — ela sorriu e balançou a cabeça —, vim porque achei que poderíamos ficar sozinhos, como nos treinamentos.

— Eu treinava com Messina.

— Eu sei. Mas mesmo assim.

Lipe brincou com a fumaça que saia de sua boca quando expirava.

Um momento depois, Cíntia estava tremendo. Chorando.

— Ei, ei, calma — sua primeira ação foi abraçá-la. Os braços dela o apertaram com força os seus ombros. O corpo dela tremia violentamente. — Porque... Me conte. Pode me contar.

Após alguns segundos ainda tremendo e soluçando, Cíntia cuspiu as palavras que lhe afligiam.

— Não a protegi como prometi. Não consegui proteger meus amigos. Fui fraca. Fui lenta demais.

Ele afagou seus cabelos.

— Quando invadiram Mifram eu estava nos estábulos, com Messina e Livia. Uma das Amazonas mais jovens. O povo começou a gritar e havia uma mancha no céu. Era fogo. E havia sons de... Coisas quebrando. Eram os muros. Eles estavam quebrando os muros do reino. Então... Então Messina me puxou quando uma flecha foi disparada na nossa direção. Nós três corremos. Meu coração... Eu podia senti-lo na garganta e quase... Quase achei que não faria nada. Porque falar é muito fácil. Então peguei uma das espadas e mandei Messina e Livia correrem, para acharem Aurora. Elas foram. E eu fiquei de guarda, esperando que os invasores ultrapassassem os guerreiros, se conseguissem. Realmente esperei e sabia que iria matá-los antes que conseguissem tocar em Aurora. — Ela soluçou de novo. Suas bochechas estavam vermelhas, como a ponta de seu nariz. Em contraste, seu rosto e seus lábios estavam pálidos — Só que nada aconteceu. Não ali, onde eu estava. Então abandonei meu posto e corri em direção ao quarto dela, precisava saber se ela estava bem, porque... Eu precisava ver, de qualquer jeito. E quando cheguei, Messina estava ensanguentada. Havia matado um dos invasores junto com Livia. Mas Aurora tinha sumido. Nenhuma das duas soube como, era para ela estar no quarto. Mas não estava. Ninguém conseguiu encontrá-la, então me desesperei. Achei... Achei que havia sido levada.

— Como Ryda trouxe vocês?

Um gorgolejo — que talvez fosse uma risada — foi a resposta dela incialmente.

— Messina e eu estávamos em busca por ela. Aurora. Então ele apareceu e fez aquela magia estranha que derrubou Érico. Ele derrubou você e Joaquim com dardos. Sinto muito. Doeu?

— Não doeu nada. — Afirmou.

Ela assentiu contra seu ombro.

— Depois que chegamos aqui e eu a vi... Você faz ideia do alívio que senti? Parecia que um elefante havia sido retirado de minhas costas ou que eu tirei um corpete ridículo.

Lipe riu junto a ela.

Os dois se separaram um instante depois. Quito pousou perto deles, foi então que Lipe teve uma ideia ousada.

— Que voar para longe por um momento?

— Como... Nele? Ele é... Bonzinho?

Lipe instruiu Cíntia a fazer o ritual que Teresa ensinou na sala de Quito. Surpreendeu a si mesmo ao se lembrar todos os passos para fazer dá certo. Suspeitou que uma coisa daquelas não se esquecia facilmente.

Quito aceitou Cíntia.

Eles montaram no grifo, Lipe na frente e Cíntia atrás, segurando sua cintura.

— É uma boa hora de dizer que nunca voei antes? — Ela riu, nervosa.

Novamente, ele olhou por cima do ombro.

— Não se preocupe. Você vai querer voar mais vezes depois da primeira vez.

E assim, zarparam para o céu.

Cíntia gritou, primeiro de medo, depois, ao sentir o vento gelado em seu rosto e adrenalina do impulso toda vez que Quito batia suas asas, seu grito se transformou em um grito de animação. 

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora