Capítulo I - Ligados por Sangue / Parte 8: Edgar Visco

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Devo ter sido de alguma forma hipnotizado por aquelas misteriosas palavras grafadas em vermelho, pois, quando dei por mim, a cozinha já estava completamente escura e o jornal havia acabado, substituído por uma novela.

Desliguei a televisão e me levantei, olhando pela última vez naquela noite o bilhete. "Que se foda essa merda", pensei, e guardei o maldito papel na gaveta da mesinha na entrada da casa. A situação havia me consumido naquela noite; precisava, de alguma forma, relaxar. Como já não era mais o jovem que um dia fora, fui para a cozinha preparar um café. Liguei a luz, peguei uma panela sobre a pia e a enchi com a água da torneira, colocando-a para aquecer em uma das bocas do fogão. Enquanto a água fervia, coloquei o coador no filtro sobre a garrafa térmica e duas colheres de café dentro dele. Aguardando, batia os dedos ritmicamente na superfície da pia. Quando a água começou a evaporar, desliguei o fogo e a joguei sobre o coador. Linda sempre insistia para que eu comprasse uma cafeteira, mas achava muito confortante aquele ritual, gostava de ver as coisas acontecendo. Algo do charme se perde quando a tecnologia entra em nossa vida com sua mania de entregar tudo pronto. Coloquei o café em uma xícara e procurei pensar em algo diferente daquela noite.

Tomei algumas xícaras, até ter decidido que havia ingerido cafeína demais; um bom banho realizaria o resto da cura.

Antes de colocar o pé no primeiro degrau da escada, desviei, por um instante, o olhar para a gaveta, que já não era mais uma simples gaveta, como no dia anterior. Talvez se eu deixasse aquela infeliz desgraça lá, ela sumiria; abriria a gaveta, nada estaria lá e eu começaria a questionar minha sanidade. E talvez esse desfecho fosse até melhor. Seria estranho, improvável, mas aquilo ter aparecido na minha sala também era bastante peculiar.

Ao final da escada, caminhei direto para meu banheiro. Estava exausto. Despi-me e entrei debaixo do chuveiro. Como era bom sentir a água batendo em meus ombros. Nada como um banho quente para sentir-se novo.

Passou um tempo e, mais relaxado, trajando apenas minha roupa de baixo, desliguei as luzes do quarto e joguei-me na cama. Deitado, coberto pelo edredom – fazia frio –, olhava para o teto, com as mãos sobre o peito. Não conseguia evitar pensar no enigmático poema, mas às vezes é muito mais fácil apenas ignorar seus problemas, dizendo-se que eles se resolverão sozinhos. Além do mais, não havia nada que eu pudesse fazer, pensamento que fez com que eu me sentisse muito arrependido por não ter ido ao encontro de minha querida.

Esvaídos meus devaneios, virei-me de lado e dormi.

***

Você concordaria que é algo extremamente desconfortável acordar pela madrugada, após a merda de um pesadelo, com a sensação de que alguma coisa ou alguém está a dois palmos de seu rosto? Naquela noite eu acordei em um pulo, gritando. Vergonhoso, eu sei. Acalmei-me apenas quando notei que era apenas um sonho, o que me permitiu voltar a encostar a cabeça no travesseiro. Parecia real, algo se aproximando em alta velocidade e depois um barulho , e então acordei suado, com a respiração célere.

Virei-me para o lado da janela, onde ficava um criado-mudo e, sobre ele, um relógio. Três horas e doze minutos. Tornei-me a virar para o outro lado, tentando voltar a dormir, mas alguma coisa me perturbava, impedindo-me de manter os olhos fechados por muito tempo. Lembrei-me de quando era apenas um menino medroso, que não conseguia dormir sem os pais por perto. E, bom, meu pai estava morto e minha mãe, não conseguindo viver com as lembranças que a cidade trazia, mudou-se pro campo, onde cuidava de sua querida horta.

Eu estava sozinho. Sozinho com meus próprios demônios emergindo do passado para me atormentar e lembrar-me de que o mal existia no mundo... de que o mal existia em mim. As lembranças... Talvez eu não estivesse errado quando criança, talvez monstros existissem , afinal.

E na minha insônia, como muitas vezes, os ponteiros desancoraram do relógio. Eu persistia em olhar e não acreditava no tempo que havia passado. "Eu preciso dormir...", eu insistia, "amanhã, a noite importante", mas as horas continuavam passando e um sentimento de impotência tomava conta de meu corpo. Envergonha-me dizer que desejei, fervorosamente, uma dose de um bom rum.

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