Capítulo XIV

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S/n

Não vejo ninguém na sala de jantar ou na sala de estar lá embaixo, então, ando até encontrar a cozinha. Entrando, vejo uma mulher curvilínea com cabelo loiro descolorido cortado em um corte curto e cheio. Com um vestido rosa e branco florido, ela está inclinada sobre uma pia, lavando um prato, então, limpo minha garganta para avisá-la da minha presença.

— Oi — digo com um sorriso quando ela se vira, secando as mãos em uma toalha. — Você deve ser Lyudmila.

Ela me encara e balança a cabeça.

— Lyudmila, sim. Você professor Tae?

Seu sotaque russo é ainda mais forte do que o do marido, e seu rosto redondo e rosado me lembra uma boneca matryoshka pintada, uma daquelas que tem outras bonecas dentro, como camadas de cebola. Suponho que ela está em seus trinta e tantos anos, embora sua pele seja tão macia que ela poderia facilmente passar por dez anos mais jovem.

— Sim, oi. Eu sou S/n. —  Aproximando-me, estendo minha mão. — Prazer em conhecê-la.

Ela aperta meus dedos com cautela e dá uma breve sacudida em minha mão enquanto pergunto:

— Você sabe onde Tae está, e se ele já tomou café da manhã?

Ela pisca sem compreender, então, repito a pergunta, tendo o cuidado de pronunciar cada palavra.

— Ah, sim, Tae.

Ela aponta para a grande janela à minha esquerda, que acaba dando para a frente da casa, onde estacionei meu carro. Só que o carro não está lá. Eu franzo a testa, e percebo que Pavel deve ter estacionado de novo ontem, quando trouxe minha mala.

Terei que perguntar a ele onde está, junto com as chaves do meu carro. Acho que ele nunca me devolveu.

Antes que eu possa fazer a pergunta para Lyudmila, vejo meu jovem aluno. Ele está correndo pelo quintal, com Pavel em seus calcanhares. O homem-urso está carregando um peixe enorme no anzol e o menino tem um sorriso igualmente grande no rosto. Os dois devem ter pescado de manhã cedo.

Dou uma olhada rápida no relógio do micro-ondas e estremeço.

Não, não é de manhã cedo. Mais para o meio da manhã. São quase dez.

Meu estômago ronca, como se fosse uma deixa, e um sorriso divide o rosto redondo de Lyudmila.

— Comer?

Ela pergunta, e eu aceno, sorrindo de volta sem graça. Pelo menos meu estômago fala uma linguagem universal.

— Tudo bem se eu pegar alguma coisa? — pergunto, gesticulando para a geladeira, mas Lyudmila se agita até lá e pega um prato do que parece ser crepe recheado.

— Bom? — ela pergunta, e eu aceno com gratidão.

Não sou exigente com comida, e se aqueles crepes forem parecidos com a deliciosa comida russa que comi ontem à noite, estarei no paraíso.

— Obrigada — respondo, caminhando para pegar o prato dela, mas ela o coloca no micro-ondas e aponta para o balcão atrás da pia.

— Vai. Senta. Eu cuidar você.

Agradeço novamente e sento-me em um dos bancos do bar atrás do balcão. Não quero ser um fardo, mas com a barreira do idioma, meu protesto educado pode ser mal-interpretado como recusa ou desagrado.

— Chá? Café? — ela pergunta.

— Café, por favor. Com leite e açúcar, se você tiver.

Ela fica ocupada fazendo isso, e eu olho ao redor da cozinha. É tão moderna quanto o resto da casa, com armários brancos brilhantes, bancadas de quartzo cinza e eletrodomésticos de aço inoxidável preto. Parte da grande ilha da cozinha no meio é ocupada por uma longa fileira de ervas em vasos e uma prateleira de vinhos com uma variedade de garrafas pendurada habilmente acima delas.

O micro-ondas apita depois de um minuto, e Lyudmila traz o prato de crepes para mim, junto com um prato limpo, utensílios e um pote de mel.

— Uau, obrigada — digo, enquanto ela coloca um dos crepes para mim, rega mel sobre ele e, em seguida, faz mímica para eu cortar e comer. — Isso parece incrível.

Eu corto um pedaço do crepe e examino seu conteúdo. Parece queijo ricota com passas e, quando coloco o garfo na boca, sinto o doce e o salgado – e é ainda mais delicioso do que esperava. Meu estômago ronca de novo, mais alto, e Lyudmila sorri com o som.

— Você gostar?

— Oh, sim, obrigada. Isso é tão bom — murmuro, minha boca já cheia com a segunda mordida, e Lyudmila acena com a cabeça, satisfeita.

— Bom. Você comer. Magra demais. — Ela move as mãos no ar, como se medisse o tamanho da minha cintura, e faz o universal tsk-tsk, em desaprovação. — Muito magra.

Eu rio desconfortavelmente e me dedico à comida enquanto ela volta a lavar a louça. É engraçado, sua crítica direta à minha figura, mas também é verdade. Sempre fui magra, mas depois de um mês de refeições esporádicas, fiquei magra demais, os músculos do meu corpo derretendo junto com a pouca gordura que eu tinha. Mesmo o bumbum que eu uma vez considerei muito proeminente, mal está lá agora; provavelmente terei que fazer um milhão de agachamentos para recuperá-lo.

O que eu farei, quando tudo isso acabar.
Se isso acabar.

Não, não 'se'. Eu me recuso a pensar dessa forma. Cheguei até aqui, iludindo meus perseguidores contra todas as probabilidades, e, agora, as coisas estão melhorando. Pela primeira vez desde que esse pesadelo começou, eu dormi a noite toda, estou com a barriga cheia e em um lugar onde eles não podem me emboscar. E em seis dias, terei meu primeiro pagamento e, com ele, mais opções, incluindo sair daqui, se é isso que preciso fazer para estar segura.

Se a escuridão que senti em Taehyung for algo mais do que um produto da minha imaginação.

Nesta cozinha iluminada pelo sol, meus medos sobre a máfia parecem exagerados, irracionais, assim como minha conclusão de que ele me quer. Como Lyudmila apontou, eu dificilmente estou no meu melhor, e tenho certeza de que um homem tão rico e lindo quanto meu patrão está acostumado com belezas de classe mundial. Quanto mais penso sobre isso, mais parece que minha atração por ele pode ter me levado a interpretar mal a situação na noite passada. O apelido, as perguntas investigativas, o tom baixo e sedutor de sua voz – tudo poderia ser um caso de diferenças culturais.

Não sei muito sobre os homens russos, mas é possível que sejam sempre assim com as mulheres – assim como é possível que russos ricos estejam acostumados a ter guardas devido aos altos níveis de corrupção e crime em seu país.

Sim, provavelmente é isso. Com todo o estresse do mês passado, deixei minha imaginação correr solta. Por que uma família da máfia se estabeleceria aqui, neste deserto remoto? Nova York, com certeza; Boston, muito provavelmente. Mas Idaho? Isso não faz sentido.

Balançando a cabeça com a minha tolice, eu limpo o resto dos crepes e bebo o café que Lyudmila fez. Então, sentindo-me otimista e esperançosa pela primeira vez em semanas, eu me levanto, levo os pratos para a pia – onde Lyudmila os toma da minha mão apesar de meus protestos – e saio para encontrar meu aluno.

Eu posso fazer isso.
Eu realmente posso.
Na verdade, estou ansiosa por isso.

Estou virando a esquina para a sala de estar, andando rápido, quando esbarro em um corpo grande e rígido. O impacto tira o ar dos meus pulmões e quase me faz voar, mas antes que eu possa cair, mãos fortes se fecham em volta dos meus braços, me puxando contra o dito corpo.

Atordoada, completamente sem fôlego, eu olho para o meu captor – e meu batimento cardíaco sobe à estratosfera quando encontro o olhar brilhante de tigre de Taehyung.

— Bom dia, zaychik — ele murmura, sua bela boca curvada em um sorriso zombeteiro. — Para onde você está indo com tanta pressa?

Devil's lair (A Obsessão Kim) - Imagine Kim TaehyungOnde histórias criam vida. Descubra agora