36 | Back to normality

9 1 0
                                    

Desabo na escada e choro, tempo suficiente para ouvir meu celular tocar sete vezes. Levanto e sinto a dor novamente, minha perna está totalmente dormente, como se não bastasse. Pego a primeira coisa que vejo na frente – um vaso antigo — e o jogo contra a parede, ele não quebra. Vasos ruins não quebram, Camryn, mas são descartados rapidamente. Assim como você.
Coloco os dedos entre o cabelo e respiro fundo. Vou até o quarto e pego o celular, seis chamadas perdidas de Maia e uma de Justin. Jogo o celular no outro lado do quarto e desabo na cama.

Três dias mais tarde

Paro na frente do supermercado e desço do carro. Minha perna explodindo de dor. Olho para baixo e vejo o curativo se encher de sangue. Pego uma toalhinha no porta-luvas e enrolo com força. Entro e percebo os olhares estranhos sobre mim. Ignoro, se me visse também estaria encarando. Faz dias que não saio de casa, só sai hoje porque a comida acabou.
Vou até a sessão dos cereais com uma cesta debaixo do braço e me abaixo o máximo que posso para pegar.
— Deixa eu te ajudar com isso.
Olho para o lado e vejo um garoto com os cabelos castanhos caídos sobre os olhos. Eu o conheço.
— Camryn Davis? — o encaro — Sou o Lucas. O garoto do hospital... do depósito de limpeza...
— Sei quem você é.
Levanto e pego o cereal da sua mão, viro e saio do corredor.
— De nada. — ele grita enquanto me afasto.
Não respondo. Sinto ele correndo atras de mim.
— Quer andar?
Levanto o olhar para encara-lo. Ele é alto, mais alto do que eu me lembro. Seu olho esquerdo está roxo, me seguro para não perguntar o que aconteceu. Não me importo de qualquer maneira.
— Andar?
Ele assente com a cabeça.
— Me dá isso. — ele pega o cereal da minha mão e depois a cesta, colocando no canto de uma prateleira — Ainda vai estar aqui quando você voltar.
O encaro novamente e o sigo até a saída. Atravessamos a rua e andamos até um bosque com uma trilha sem fim. Minha respiração começa a ficar ofegante e sento no primeiro banco que vejo. Ele senta ao meu lado, sem falar nada. Aperto a toalha na minha perna, sinto uma dor rápida mas aliviada. Suspiro e o encaro, ele está olhando para o chão.
Levanto e ele levanta em seguida, andamos um longo tempo sem falar uma palavra.
— O que aconteceu com o seu olho? — pergunto, olhando para frente.
— Esbarrei numa árvore.
A mesma coisa que eu disse quando ele me perguntou do meu dedo no hospital. Rio de leve.
— Por quê me trouxe aqui? — dessa vez paro e o encaro. Ele faz o mesmo. — Você não perguntou nada. Normalmente as pessoas que eu esbarro me perguntam se eu estou bem.
— Por quê eu deveria perguntar se eu sei que você não está? — seus olhos são de um tipo castanho esverdeado, ele não pisca — Esse é o problema das pessoas. — ele vira e olha para frente — Elas perguntam coisas que já sabem a resposta.
Ele volta o olhar para mim.
— Sei que não está bem. Você não parece bem. — ele para, como se estivesse me analisando — Sua perna tá ferrada, seu rosto tá inchado, você tá com olheiras e os seus olhos estão mais escuros do que eu me lembro.
— Bem, não sou a única que não está bem aqui. — ele da de ombros e encara uma árvore distante — Algo me diz que você está acostumado com isso.
Ele me encara.
— Foi meu pai. Não nos damos muito bem.
Suspiro.
— Você não é único, confia em mim.
Ele me encara de novo.
— Você tem uma longa história dentro de você, não tem?
— Você também, eu aposto.
— Não tão grande como a sua. Quero dizer... você está... — ele me encara de baixo pra cima — quebrada.
Rio de leve.


Passo a tarde toda falando sobre mim para Lucas. É bom poder falar em voz alta, afinal, ele é a única pessoa que não me olhou como se eu fosse uma doente. Conto para ele do acidente, de Justin – com mínimos detalhes –, do meu pai, da minha mãe, de Maia.
— Então, você vai lembrar de mim no final do dia?
— Sou amnésica, não tenho Alzheimer.
Ele ri. Sei que estava blefando.
— Sua vez. — ajeito as muletas do lado do banco e o encaro. Ele suspira, olhando para frente.
— Não tenho muito a dizer. Fugi de casa mês passado, logo depois que a minha mãe faleceu. Estou morando numa oficina, é bem legal na verdade, trabalho para um cara que é meio turrão mas é como um pai pra mim.
— E o seu pai?
— Ele é um idiota. Minha mãe tentou consertar ele, mas ele não tem conserto. E nunca vai ter. Ele bebe. — ele da uma pausa — Muito. Fuma e joga com o povo dele.
— O povo dele?
Ele balança a cabeça devagar.
— Meu tio e uns caras que moram perto. É o inferno onde eles moram, esse é um dos motivos de eu ter ido embora. Só continuava lá por causa da minha mãe, ela acreditava dele, sabe? E eu tinha medo de deixá-la sozinha com ele. Sempre tive. Desde de pequeno. Ele nunca foi o tipo de pai que te levava para o parque para jogar futebol, ele me levava para campos de tiro e me ensinava a atirar em qualquer coisa que se mexia. De uma placa normal a uma raposa. Teve uma época que eu não queria ir mais. Aquilo não era o que eu queria ser. Então eu disse para ele e ele me deu um tapa. — ele puxa um pedaço de folha e começa a rasga-lá sem muita atenção — Depois de uns dias ele chegou com um pássaro, me deu e falou para mim torná-lo obediente. Fiquei dias com o pássaro, ele se apegou a mim, e eu a ele. Ele pousava no meu ombro e mexia com o meu cabelo, dormia no meu ombro, era perfeito. Quando fui mostrar a ele... — ele suspira — ele disse "Você o ensinou a amá-lo. Tudo o que fez foi quebra-lo .", então ele pegou o pássaro e quebrou seu pescoço na minha frente. Eu chorei por dias. Escondido, claro. Se ele me visse chorar, ele me batia, com qualquer coisa que tivesse na frente, um cinto, um vaso, uma madeira, uma garrafa... qualquer coisa. Hoje em dia não mudou muita coisa. Ele quer que eu seja mais um dos capangas dele, mas não é isso o que eu quero. Ele manda eu fazer as coisas e quando eu falo não — ele aponta para o olho roxo — isso é o que acontece. Depois que eu fugi e esse cara me acolheu, também não mudou muita coisa. Ele aparece constantemente na oficina, pedindo o dinheiro que eu ganho. Ele foi lá hoje de manhã, eu disse que não tinha todo o dinheiro e ele me socou. Então, basicamente, essa é minha vida.
— Sinto muito...
— Não sinta. — é a primeira vez que ele me encara desde que começou a falar. — De qualquer maneira, você não me contou sobre seus amigos.
— Eu só tenho dois.
Apesar de ser verdade, ambos rimos. Suspiro.
— Tenho ignorado eles ultimamente, sabe? Eles me ligam constantemente, já foram até a minha casa mas eu não atendo. Nenhum dos dois. O telefone e a porta, quero dizer. Preciso de um tempo sozinha para entender tudo isso. — suspiro — Não to preparada para reviver o drama todo.
— Mas você me contou.
— Talvez eu esteja treinando. — deito a cabeça e ele ri.
Ele levanta e olha o relógio de pulso.
— O mercado fecha daqui a pouco.
— É, melhor irmos andando.

The Second ChanceOnde histórias criam vida. Descubra agora