TRINTA E DOIS

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Capítulo Trinta e Dois

Não era sua intenção propriamente chorar. Acordou com lágrimas escorrendo de seus olhos, e isso não era bem sua culpa. Deuses eram seres espontâneos e fortemente afetados por sentimentos e visões, e mesmo a deusa da sabedoria não era diferente, ainda que ela não fosse dada a sentimentalismos. Mas quando Atena olhou para o lado e viu que Poseidon não estava ali, não impediu que o choro viesse. E ele veio.

Durante os últimos dias, ela esteve tão imersa em conhecer Poseidon como se nunca o tivesse visto antes que ela quase esqueceu que já o conhecia bem demais. Ele só não sabia disso. Ele era o lado cego, não ela. E por mais que Atena tivesse tentado reprimir aquela agonia dentro de si enquanto estava com ele, por mais que tivesse repetido mais vezes do que se lembrava que estava tudo bem e ela não podia fazer nada sobre o passado... O passado ainda a atingia como um caminhão, e vinha até no formato de sonhos para lembrá-la de que ela não podia escapar. Aquele peso estava em seus ombros e aquela sombra a perseguiria por toda a eternidade, e só ela sabia disso. Estava aproveitando ínfimos momentos bons, mas não podia se esquecer do porquê de ter acabado com tudo aquilo no passado. Nada tinha mudado. Ela precisava adiantar aquela missão tanto quanto pudesse para evitar se afogar nos sentimentos que cresciam a uma velocidade perigosa dentro dela.

Atena respirou fundo e foi até o banheiro para se olhar no espelho. Não duvidava que alguém viesse atrás dela se ela não saísse do quarto logo, e ela não queria ser encontrada como se tivesse acabado de sair de uma sessão de choro - que era exatamente o que havia acontecido.

O espelho mostrou exatamente o que Atena esperava ver: olhos vermelhos, lábios inchados e o rosto salpicado de pontos vermelhos. Ela abriu a torneira e jogou água gelada no rosto até que só restassem pequenas manchinhas vermelhas quase imperceptíveis. Aceitável, ela pensou, mas não tinha certeza se podia sair assim.

Uma batida na porta, no entanto, contrariou sua ideia de sair da vista de todos por um tempo, e Atena andou arrastando-se sobre os próprios pés para atender. Se fosse Poseidon, ele sem dúvidas desconfiaria de algo com apenas uma olhada. Ele tinha esse dom de ler através dela como se ela fosse um livro aberto. Mas as batidas se tornaram mais fortes e constantes, e uma voz feminina chamou seu nome, e Atena soube imediatamente quem era.

Parada no corredor, com o rosto quase tocando a madeira da porta, Helena tinha em mãos uma bandeja prateada carregada de alimentos para o café da manhã. A menina tinha os longos cabelos presos em um coque desajeitado no topo da cabeça e usava roupas parecidas com aquelas que vestia no dia em que conhecera Atena - sandálias, um pingente minúsculo atado ao tornozelo esquerdo e shorts jeans tão curtos que desapareciam sob o camisão com o nome de um time americano de basquete. Atena se perguntou como uma garota que sequer sabia pronunciar "França" conseguia se vestir tão parecida com as adolescentes de Nova York. Influência de Poseidon, talvez.

- Bom dia, Atena! - exclamou animada como de costume. - Poseidon me pediu para trazer seu café da manhã hoje porque ele está ocupado e não pôde comer com a gente.

- Ah. Bom dia - fez Atena, abrindo espaço para que Helena entrasse no quarto. - Ele chegou a dizer o porquê?

- Não - disse Helena. - Só mandou um tritão para dizer que ele estava ocupado.

Atena assentiu, pegando uma torrada da bandeja e mordendo. Helena aproximou o rosto dela, e franziu as sobrancelhas.

- Não quero me intrometer na sua vida, mas está tudo bem?

Atena deu de ombros, tentando parecer casual.

- Claro que sim.

- Não parece - afirmou Helena, estreitando os olhos em desconfiança. - Se eu tivesse que chutar, diria que você esteve chorando.

- Impressão sua.

- Atena - Helena puxou seu braço, fazendo com que a deusa a encarasse. - Eu não sou burra. Sei que aconteceu algo. Não quer conversar sobre isso?

Atena suspirou.

- É complicado, Helena. Um assunto de milênios. Você não vai querer saber.

- Bem, eu tenho milênios - Helena apontou, se sentando na cama com um olhar sugestivo. - Me deixe adivinhar: tem a ver com Poseidon.

- E quando é que não tem a ver com ele?

Helena sorriu e abriu os braços.

- Eu sou toda ouvidos!

Atena suspirou, ponderando durante aquele curto minuto se valia a pena dividir com Helena tudo o que a incomodava. A garota podia ter milênios de idade, mas talvez nunca chegasse a entender a complexidade da história de Atena e Poseidon. A deusa duvidava que alguém além dela mesma entendesse perfeitamente. Mas Helena estava disposta a ouvir e a ajudar, e talvez aquilo não fosse tão mau assim.

- Se eu te contar uma coisa, você promete não contar para ninguém?

- Mas é claro - Helena passou a mão pela boca como se fechasse um zíper. - Essa conversa nem aconteceu.

- Bom... Eu não sei nem por onde começar - Atena puxou um fio solto do lençol, nervosa. - Essa noite eu... Eu...

Atena abriu e fechou a boca diversas vezes, tentando organizar pensamentos e vocalizar palavras que não saíam.

- Tudo bem - Helena a acalmou. - Respire fundo. Não tenha pressa. Tome seu tempo.

- Okay. Essa noite eu tive uma memória - disse Atena lentamente. - De alguns anos atrás. E com isso eu quero dizer uns quatro milênios...

- Espere - Helena a cortou. - Quantos anos você tem?

- Eu sou uma das deusas mais novas - disse Atena. - Tenho quatro mil cento e vinte e um anos.

- Uau - os olhos de Helena brilharam. - Quem é o deus mais velho?

- Tecnicamente é Afrodite. Ela nasceu antes mesmo dos titãs. Mas dos filhos de Cronos, Hades é o mais velho.

- Ah, o senhor do Submundo - Helena estremeceu. - Não gosto muito da presença dele. Ele me dá medo. Como se carregasse algo ruim. Na única vez que ele visitou Atlântida, eu via coisas estranhas toda vez que ele passava por mim; como se fossem visões, é difícil explicar.

- Hades não é o tipo de pessoa que atrai admiradores - Atena abriu um sorriso triste. - Mas ele não é um deus ruim. Pelo menos não em comparação ao resto de nós. Os deuses só têm medo demais para tentar falar com ele.

- E você não?

- Eu o entendo - disse Atena. - Hades tem todos os motivos para ser como é.

- Mas ele... Oh, esqueça - disse Helena. - É um medo bobo. Me desculpe pela interrupção. Por favor, prossiga.

Atena cruzou as pernas, apoiando os cotovelos sobre os joelhos.

- Noite passada eu tive uma memória - repetiu. - Pouco depois que eu... Nasci, para todos os efeitos, Poseidon e eu nos tornamos amigos. Realmente amigos. - Atena não podia contar toda a verdade. Não tinha certeza do impacto que causaria com aquilo. - Andávamos juntos sempre que tínhamos tempo. Ele já chegou a me trazer aqui antes - Atena lembrou. - Mas era no outro palácio, aquele que foi destruído, e você ainda não era nascida. Eu me lembrei de uma vez em que estávamos no jardim do Olimpo e ele... Ele disse...

O resto da frase se perdeu na garganta de Atena. Ela não conseguia falar. Doía tanto e tão profundamente que ela não podia verbalizar o que sentia. Era como se uma faca fosse cravada em seu peito, esperando pela palavra certa para rasgá-la de cima abaixo. E como se não bastasse, ainda havia Helena, olhando para ela de modo inquisidor.

- Eu não consigo, Helena - ela disse. - Me desculpe, mas eu não posso te contar. Não estou pronta para isso.

- Está tudo bem - Helena se levantou, pousando uma mão sobre o ombro de Atena. - Quando estiver pronta, sabe onde me encontrar. Mas espero que esteja se sentindo melhor.

Atena assentiu, agradecendo. Helena se dirigiu à porta, fazendo menção de sair, mas quando girou a maçaneta, já havia alguém lá.

Três Desejos - concluídaOnde histórias criam vida. Descubra agora