Olhou para o relógio. 19:15h "Nossa, o tempo está voando, preciso correr com isso", pensou. Em 15 minutos a padaria onde trabalhava estaria fechando as portas e ela não queria perder nenhum minuto a mais depois disso. Tinha uma viagem marcada para as 21:15h. Sabia que teria tempo, mas não queria arriscar. Início de feriado prolongado e as estradas ficavam uma loucura. Da vez anterior quase perdeu o ônibus por conta do trânsito. Acelerou as vassouradas.
Lá de dentro era possível ouvir o barulho dos colegas que igual a ela se desdobravam para acabar logo suas incumbências. Todos tinham planos. Ela sorriu ao pensar que dessa vez ela também tinha. Ir para a casa dos pais, passar uns dois dias. Rever suas coisas, dormir na sua cama. Sentir o cheiro da sua mãe e provar sua comida. Bater um papo de adulto com seu velho. Planos simples, mas que lhe traziam uma estranha ansiedade.
Um movimento perto de si a trouxe de volta. Lembrou - se de que ainda não estava em casa, tinha trabalho a fazer. "Olá, boa noite, o que deseja?" "Um café, por favor". "Claro, claro. Açúcar ou adoçante? ...". O cliente deve ter reparado na sua má vontade em prolongar o expediente, já que tomou a bebida em três goles. Torceu para que o patrão não tivesse notado também.
19:30h e as portas começando a baixar. Lembrou - se de separar o pão que havia feito de manhã ali mesmo naquela cozinha impecavelmente limpa e que levaria para os pais experimentarem. Será que se orgulhariam dela? Será que pensariam que apesar de tudo ela não era uma completa inútil? Ou será que ainda se ressentiriam do fato de que a sua formação de cinco anos em uma faculdade não lhe rendera a vida que pensaram? Preferiu pensar que o pão combinaria muito bem com a sopa que sabia que a mãe faria.
19:40h e ela na frente do estabelecimento se despedindo dos colegas e entrando em um Uber que a levaria até a rodoviária. Motorista simpático, conversaram animadamente a viagem toda. Ela lhe deu 5 estrelas.
Chegou com tempo de sobra na rodoviária. Não precisaria correr dessa vez. Aproveitou para beliscar o lanche que levara enquanto ficava de olho na mochila e no pão. Não queria que ele ficasse amassado. Se deu conta, enquanto olhava para ele, guardado dentro da sacola com o logotipo enfeitado da padaria, que apesar de trabalhar ali a pouco mais de um mês e essa ter sido a terceira vez que fizera a receita, nunca provara dela. Só restava torcer que fosse tão gostoso, quanto era bonito.
Na rodoviária tirou o excesso de casaco, já que não estava nem de perto tão frio quanto previra. Sentou ao lado de uma tomada e aguardou.
21:00h e o ônibus chegou. Mesmo animada com a perspectiva de embarcar logo, foi difícil levantar daquela cadeira. O dia fora puxado. Com uma funcionária a menos na equipe e as vendas aumentando, a semana fora massacrante. Ainda mais pra ela pouco afeita a esse tipo de rotina. Sentia-se um caco. Mas levantou e subiu no ônibus.
Ela, a mochila e o pão.
Dentro do ônibus mais um incômodo: poltronas apertadas demais para uma garota como ela, que além de grande não sabia ser econômica na hora de arrumar a mala. E ainda tinha o pão que não podia amassar. Com esforço e calma se ajeitou, mas o aperto não lhe permitiu nem colocar o cinto de segurança que, paranóica, sempre usava. A companheira de poltrona era tranquila, não puxou conversa. Ela ficou feliz com isso, preferia assim. Passara o dia todo falando e vendo pessoas. Queria um pouco de sossego agora.
21:15h e pontualmente o ônibus saiu. Em menos de duas horas estaria abraçando seus pais, em menos de três o pão já teria ido quase todo. Da janela podia ver a noite que caíra sobre a cidade. Deixou - se apreciar.
22:00h. O sono começou a lhe rondar, mas deu um jeito de o espantar. Não queria dormir, mesmo estando exausta. Nem que perdesse a próxima manhã roncando e babando em sua cama. Essa noite dormiria bem tarde. Lá fora as luzes brilhantes e a lua fascinante.
22:30h. Uma garota sonolenta, um pão macio e fresco e uma pista escorregadia.
23:10 e seus pais chegaram na rodoviária, conforme combinado, para espera - la.
23:30h e eles começaram a se preocupar. Era meia noite quando eles souberam.
Dentre as 40 pessoas daquele ônibus, ninguém ficou intacto. A única coisa inteira era um pão caseiro que tirando o amassado na lateral não sofrera grandes danos. Mas ninguém prestou atenção a ele, caído ali em uma moita próxima, onde ficou até que o tempo e as interpéries tratassem de o liquidar.
Os pais da garota nunca souberam nada sobre o pão.
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Pessoas, I'm alive!
Caramba, como eu tava sentindo falta de escrever e aparecer por aqui, mas com essa nova rotina louca que estou vivendo ainda não consegui me organizar para dar as caras, que dirá apresentar algo novo. Esse rabisko surgiu ontem, dentro do ônibus quando me vi com um pão na mão e um cinto de segurança impossível de manobrar devido ao aperto da poltrona. Ou seja, situação totalmente inspiradora, haha. Espero que gostem dessa estorieta trágica e despretensiosa e me aceitem de volta. De qualquer forma, vai ter pão viu!
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Rabiskos
RandomTentativas de trabalhar a escrita, através de temas variados, textos curtos, sem grandes compromissos, sem prazos ou metas, apenas aproveitando qualquer inspiração que surgir. Também posso revisitar algumas histórias ou poemas meus, publicadas em ou...