Mariza olhou mais uma vez para a tela do celular. Ainda sem respostas. O peito apertado e aquela sensação opressiva cada vez aumentando mais e não havia água com açúcar no mundo suficiente para diminui-la. Sentiu vontade de gritar com todos que à sua volta tentavam acalmá-la. Só havia uma coisa capaz de acalmá-la e era ter em seus braços a sua menina.
Duas semanas já e era como se muitos invernos tivessem passado, ou ainda, que aquele que chegara no momento em que Cecília desaparecera continuasse eternamente e não tivesse pressa de desaparecer. Ela já havia sumido antes, mas nunca por tanto tempo, nunca dessa forma, sem avisar. Ela sempre avisava, era o combinado entre elas, e Mariza sempre respeitara a necessidade dela de se afastar e se isolar do mundo por um tempo. Mesmo contrariada, mesmo sangrando por dentro. Não havia porque quebrar a promessa. Não havia porque, ela ficava se repetindo. O pensamento não trazia conforto, apenas mais dor.
Tinha medo. Não de que algum maluco tivesse a tivesse raptado em busca de um dinheiro inexistente, uma hipótese levantada por pelo menos metade dos amigos para quem ousara falar sobre o não retorno, ou de que ela tivesse sofrido algum acidente e estivesse incapacitada de entrar em contato como sabia cochicharem a outra metade. Aquilo que ela temia era o que habitava na escuridão de Cecília. Eram os monstros que a acordavam durante as madrugadas e que tiravam o brilho de seus olhos de tempos em tempos. Eram aquelas vozes que sussurravam inverdades cruéis e faziam sua menina triste. Eram aqueles silêncios doridos que tomavam conta daquele corpo grande e mesmo assim tão frágil e tão marcado por dentro e por fora. Eram os traumas do passado erguendo a voz e abafando os risos tímidos do presente. Mariza tinha medo de que finalmente eles tivessem vencido.
Mesmo depois de tanto tempo, de todo o cuidado, de toda a terapia, de todos os remédios, de todas as promessas, depois de todos os risos, os abraços e os sorrisos, depois de todas as superações, de toda a música, de todos os sons, talvez eles tivessem vencido. Não era justo! Não era justo, queria gritar Mariza. Por que os fantasmas do passado não a deixavam em paz? Já não haviam pagado todos os preços indevidos, todas as dívidas não contraídas? O que mais poderia se exigir de Cecília, o que mais poderiam exigir dela? E a lei da equivalência? Não era agora a hora de finalmente serem felizes?!
Para cada pergunta de Mariza, o silêncio era a resposta. Ah, como ela odiava o silêncio. Preferia mil vezes os soluços desesperados e os risos quebrados que aquele nada que sugeria tudo.
Bastava uma mensagem, uma palavra, um grito, um sussurro que fosse e ela largaria tudo e todos para ir até Cecília. Quantas vezes já não dissera que ela não precisava passar por tudo isso sozinha? Não mais... Quantas vezes já não demonstrara que seu amor era real e que ela não a abandonaria como tantos já fizeram? Estava disposta a mostrar mil vezes mais, duas mil vezes se preciso. Ela só queria ter a chance de fazer isso mais uma vez. Mas não havia nada. Apenas o silêncio como uma nuvem escura prenunciando uma tempestade prestes a desabar. Mariza conseguia sentir, estava no arpesado e rarefeito, no tempo que andava em pausas de muitos tempos. Se espiasse pela janela da cozinha talvez fosse capaz de ver as cores em todos os tons mais escuros do horizonte.
Antes que sufocasse de vez e de fato, abandonou Tiana e Ricardo - que estavam na sua vez de acompanha-la em sua espera, a despeito de sua vontade -, na cozinha com suas águas doces, seus olhares piedosos e trocas de mensagens preocupadas e foi até o pequeno jardim nos fundo da casa. As flores plantadas ali com todo cuidado por Cecília já começavam a perder o viço. Duas semanas sem cuidado algum e, assim como ela, estavam murchando a olhos vistos. Olhando para as flores abandonadas, sentiu raiva. "Bem feito, Cecília! Bem feito! É isso que acontece se você some, é isso que acontece...". Só que a raiva já não era mais raiva, era apenas uma máscara para a saudade. Mas uma máscara de papel na tempestade não dura.
Por força do hábito ou por não saber o que fazer com as mãos agora que não havia os cabelos dourados de Cecília para bagunçar, Mariza acendeu um cigarro. E depois mais alguns. Não fumou nenhum, apenas deixou queimar lentamente até o fim, um a um. Observou sem ver enquanto a pequena chama consumia a si mesma até virar cinzas.
Cecília não gostava de seus cigarros, dizia que fazia mal, que o cheiro não era agradável e que com o dinheiro gasto neles elas poderiam construir mil vidas. Para Mariza bastava uma, desde que estivessem juntas nela. Nunca mais olharia para um cigarro, prometeu, se sua menina voltasse. Nunca mais fumaria coisa alguma. Nem mesmo aqueles cigarros escondidos na lavanderia das manhãs bem cedo junto à xicara de café preto bem forte como gostava, nem aqueles verdinhos que vez que outra compartilhava com os amigos perante o olhar torto da namorada. Abriria mão até dos amigos, pensou assustada, mas sem dúvidas, se fosse por Cecília. Mesmo que ela jamais fosse lhe pedir isso, assim como nunca lhe pedira para parar de fumar.
Cecília nunca lhe pedira nada.
Talvez esse fosse o problema.
"Mariza e sua síndrome de salvadora", como diziam os amigos próximos. Sempre querendo salvar as menininhas sofridas e indefesas. Para todos, Cecília era apenas mais uma. Para Mariza, só existia ela. Desde sempre fora ela. As outras era sua forma torta de substituir o insubstituível. Apenas uma forma de cobrir o tempo longo da espera por Cecília. Até que ela tivesse pronta, até que ela a aceitasse, até que ela se aceitasse. Era horrível pensar assim, ela sabia, mas era como as coisas eram. E por serem as coisas donas de si mesmas, elas vinham na ordem em que queriam vir. E então Cecília viera, antes que estivesse pronta.
Talvez Cecília nunca fosse estar pronta, mas Mariza precisava que ela a aceitasse. A rejeição doía, egoísmo ou não, a dor era real. E como doía ver-se impedida de atravessar a parede que a envolvia. Uma parede que tinha mais intimidade com a sua garota do que ela jamais teria. Mas a rejeição já não era mais o problema, não agora, o problema agora era Cecília sozinha e perdida em si mesma sabe se lá onde. Será que ela conseguiria encontrar o caminho de volta ou dessa vez seria para sempre? Pensar nisso era como morrer muito, pouco a pouco, eternamente.
Mariza quis gritar, tão alto e tão forte que seu chamado atravessaria as densas nuvens e chegaria até Cecília. Tão alto que as vozes se calariam e os fantasmas recuariam envergonhados. Tão alto que a Terra temeria permitir-lhe outro caminho que não o de volta para casa. Mas a verdade é que não havia mais voz, apenas um breve murmúrio sofrido:
"Volta pra casa, amor."
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Rabiskos
RandomTentativas de trabalhar a escrita, através de temas variados, textos curtos, sem grandes compromissos, sem prazos ou metas, apenas aproveitando qualquer inspiração que surgir. Também posso revisitar algumas histórias ou poemas meus, publicadas em ou...