A torre

15 3 0
                                    

Há quanto tempo estou aqui já não importa mais. O que importa é quanto tempo levará até que me esqueçam. Quanto tempo levará até que eu esqueça.

Houve um tempo em que eu contava, não como uma tentativa de marcar o tempo, mas como uma forma de desviar os pensamentos. Foi pelo mesmo motivo que me tranquei nessa torre perdida em meio ao fim do mundo desconhecido. Sempre fugindo. Mas o que me dei conta é que aqui, dentro desses poucos metros de construção antiga e úmida, onde o tempo não passa, com apenas a companhia da lua e dos poucos pássaros que se atrevem pela minha janela aberta a fim de roubar algumas das amoras selvagens que contra todas as expectativas nascem fartas nessa parede, por entre as rachaduras cobertas de musgo, aqui é onde os pensamentos te encontram.

Aqui, esquecer é impossível. Então eu lembro.

Lembro principalmente do sorriso torto e fácil se desenhando naquele rosto comum, mas que com um olhar mais atento se transforma na coisa mais perigosa do mundo. Perigosa sim, porque uma vez que você percebe a verdadeira beleza por trás de toda a simplicidade dos traços, você está condenado para sempre. Foi assim comigo e imagino que não serei a única vítima desse acontecimento. Tal pensamento me incomoda profundamente.

Suas palavras sempre foram muitas e tão audazes. Ora vulgares, ora cheias de sabedoria popular. Um homem do povo, ele se dizia. Um filho perdido da realeza, ora se gabava após alguns bons goles de vinho barato, inventando títulos fantasiosos de falsa grandeza e arrancando risos da plateia que sempre se reúne perante esses espetáculos alcoólicos. Eu sempre fui sua plateia mais cativa, feliz com meu lugar especial de espectador privilegiado ao seu lado por quase toda uma vida.

Desde meninos que nossos destinos se cruzaram. Ele mais menino que eu, um menino que se esqueceu de virar adulto, a despeito do corpo forte e cheio de músculos trabalhados a ferro e fogo nas oficinas de dirigíveis onde ganha o dinheiro que gasta nas muitas farras domingueiras. Seus traços já não carregam a sutileza da primeira mocidade e cochicham sobre o homem que ele deveria ser, mas basta um sorriso, um trejeito, e todo o seu rosto confessa o menino que ali viverá para sempre. Cheio de histórias, cheio de manias e cheio de sonhos.

Sonha em voar, esse menino-homem. Dizia que um dia terá seu próprio dirigível e cortará os céus com ele. Sem objetivos definidos, sem paradeiro ou destino. Seu sonho é voar, pousar não será necessário. Ele alegava que me levaria consigo, afinal de contas precisaria de seu copiloto. E eu me permitia sonhar com ele, mas não era com as nuvens e o vento cortando o meu rosto que eu sonhava, era com sua presença ao meu lado para sempre, somente nós dois acima do mundo e de suas necessidades. Eu só demorei muito tempo para perceber.

Eu culpo a lua, as estrelas, o vinho. Eu culpo seu sorriso, eu culpo o salário extra que ele recebeu naquele dia, eu culpo a noite agradável. Eu culpo o mundo e o universo. Preciso culpar alguém por ter despertado esse monstro que agora vive em meu peito, cada vez mais faminto, e que não fui capaz de deixar atrás da porta que tranquei no momento em que aqui entrei. Um monstro do qual não pude me livrar, assim como me livrei da única chave capaz de me tirar daqui. O monstro do desejo vive dentro de mim agora e quanto mais eu lembro, mais ele cresce, e quanto mais ele cresce, mais diferente ele fica e eu temo que já não possa se chamar apenas de desejo ou de luxúria. O pecado que carrega, parece ter outro nome.

Já era final de um dia daqueles muito quentes e eu estava de folga, aproveitando para devorar alguns livros e algumas frutas secas que comprara mais cedo na feira. Enquanto eu estava dividido entre um bocado e um parágrafo, ele adentrou o meu quarto, pulando a janela sem cerimônia como sempre, o corpo ainda suado do trabalho e os cabelos um ninho de rato tão sensacional que me pus por uns bons pares de segundos a admirar. Já vinha alegre do vinho que carregava em sua mão, presente de seu chefe que feliz com a conclusão do último grande projeto em que participara lhe dera um dinheiro extra e pagara bebidas a todos que haviam contribuído para a construção daquele que seria considerado por muitos anos o dirigível mais incrível de todos os tempos. A maior ousadia do homem, uma heresia cortando os céus a despeito das leis divinas.

RabiskosOnde histórias criam vida. Descubra agora