Impulso

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Matilda estava já vinte minutos dentro do ônibus sacolejante. Sentava em um banco duplo, já que os unitários estavam todos ocupados. Em seu colo ia a mochila quase vazia e em suas mãos um livro grosso que tentava terminar. Lá fora a chuva acabava de banhar a cidade e deixava cair uns últimos pingos finos e gelados. A janela fechada para impedir a entrada de água incomodava Matilda, que adorava sentir a brisa fresca contra o seu rosto. A janela fechada também deixava tudo meio abafado, sensação que ficava mais forte conforme acompanhava o sufoco que as personagens de Natsuo Kirino passavam. Pessoas circulavam pelo coletivo, entrando e saindo e ela sabia que ainda haveria um bom tempo até que precisasse se levantar dali. Portanto não prestava muita atenção, preferindo perder-se nas linhas daquela história instigante que se passava em uma realidade que não era sua, mas com a qual conseguia estranhamente sentir-se conectada.

Então bem em um momento crucial do livro, quando Masako acabava de tomar uma decisão arriscada ela sentiu a presença de alguém ao seu lado.

-Posso me sentar aqui? – perguntou uma voz feminina macia.

Matilda, meio irritada por ter tido sua atenção retirada das páginas, achou nada a ver esse pedido.

-Claro, o banco é público. – Respondeu meio rude e continuou a ler sem lançar em direção à outra nem mesmo um breve olhar.

A pessoa ao seu lado não disse mais nada, apenas sentou-se em silêncio. Passado o calor do momento, Matilda sentiu-se mal por ter sido rude, não era um costume seu e pensou que talvez tivesse ofendido a desconhecida. Mas uma timidez quase crônica a impediu de dizer algo mais e ao invés de estender o assunto, tentou focar na história que lia.

Conforme o ônibus andava e os minutos passavam, foi ficando cada vez mais difícil se concentrar. Havia um perfume gostoso vindo de seu lado, lhe invadindo as narinas e lhe confundindo os sentidos. Aos poucos foi se tornando muito consciente daquela presença tão próxima de si. A perna macia que encostava na sua conforme o sacolejar do coletivo. A mão delicada segurando um guarda chuva vermelho, meio molhado ainda. Sua visão periférica notava ainda um par de all star surrado e um longo cabelo castanho que não lhe permitia adivinhar o rosto, a não ser que começasse a encarar. Ela jamais encararia alguém.

Por algum motivo o ar parecia mais denso e Matilda começou a suar frio. Se concentrar no livro agora estava impossível. Seu corpo parecia querer formigar e estava tão tensa que quando ouviu a voz ao seu lado quase deu um grito de susto. Sentia-se ridícula e foi meio tremendo que tratou de abrir a janela atendendo ao pedido tímido da companheira de banco.

Não havia mais chuva lá fora e a brisa gelada veio com tudo em direção ao seu rosto, entrando por entre os cabelos curtos e lambendo seus lábios trêmulos. Arrepiou-se. A sensação era ótima e tornou a presença ao lado de si mais tolerável. Teve também a impressão de ouvir um leve suspiro de alívio vindo do lado. Sorriu sem nem se dar conta.

Mais alguns minutos passaram e ninguém seria capaz de imaginar a batalha interna que ocorria naquela garota de cabelo azul desbotado com um livro grosso nas mãos. Matilda queria virar-se para a garota ao lado, observar seu rosto e pedir-lhe desculpas pela grosseria cometida ao que pareciam séculos atrás. Queria falar sobre o tempo, sobre o livro que lia, sobre os sonhos que tinha e as dúvidas que a corroíam. Queria saber como eram os olhos daquela menina que não tinha coragem de encarar, queria saber seu nome e ouvir um pouco mais daquela voz gostosa. Queria tomar-lhe as mãos e convidá-la para um café. Queria tudo isso, e tantas coisas mais e, no entanto sentia-se incapaz por não conseguir nem mesmo se mover.

Por dentro sentia que morria mais uma vez, por novamente não dar voz aos seus desejos. Recolheu todas as suas vontades e colocou-as naquela caixinha já muito conhecida e bastante cheia. "É só mais uma paixonite instantânea de ônibus", tentou racionalizar. "Logo mais nem vou lembrar de sua presença. Nem mesmo sei como é a cara dela. Estou sendo boba. Boba." E conforme os pensamentos vinham, sentia-se encolher cada vez mais. Queria desaparecer.

A pessoa ao lado não parecia perceber dela nada estranho, e se percebeu, não comentou. E então, o ônibus foi parando em mais um ponto e Matilda sentiu o vazio repentino ao seu lado, tão parecido com aquele dentro dela. Levantou finalmente os olhos observando de perfil a garota que descia pelos degraus do ônibus em direção à saída. Então a porta se fechou e o ônibus seguiu. Matilda sentiu-se sufocar novamente e não teve coragem de nem ao menos espiar pela janela a garota que provavelmente ficava mais longe a cada segundo. Foi quando tentou voltar os olhos para o livro que ainda tinha em suas mãos, como se ali estivesse o refúgio que precisava, que notou o objeto caído ao chão, perto de seus pés calçados em um coturno novo e ainda desconfortável, mas ótimo para os dias de chuva.

O guarda chuva vermelho da garota misteriosa.

Sem saber muito bem o que tomava conta de si, enfiou o livro na mochila, pegou o objeto em suas mãos e levantou-se afobada. Começou a apertar loucamente o botão de parada, e perante o olhar estupefato das outras pessoas do ônibus, implorou ao motorista indignado que abrisse a porta do ônibus para que descesse. Talvez pelo desespero sentido em sua voz, ou porque já estava mesmo parado esperando o sinal abrir, o motorista acabou por ceder facilmente.

Foi assim que Matilda se viu parada numa rua desconhecida de um lugar que ficava a quilômetros de sua casa, com um guarda-chuvas vermelho nas mãos, a mochila nas costas e o coração na garganta. Logo atrás de si o dia começava a se tornar noite e os postes já estavam acesos, parecendo grandes holofotes prontos a iluminar seus passos. Olhou mais a frente e percebeu que não estava sozinha na rua que parecia tão vazia. Naquela rua, no ponto de ônibus mais a frente, havia outra garota que parecia encará-la firme.

Seguiu afobada em direção a ela, tentando pensar no que dizer para que não fosse considerada uma louca desvairada. Não que estivesse se sentindo muito sã naquele momento. Mas quando chegou até a outra, todas as palavras morreram na garganta.

Ficou ali parada, igual uma estátua, os olhos presos ao chão, sem saber o que fazer. Nunca soubera muito bem como lidar com situações inesperadas e era a primeira vez que se dava chance de fazer algo impulsivo. Então sentiu uma mão gelada e macia tocando o seu queixo, fazendo com que seu rosto levantasse o suficiente para visualizar aqueles olhos castanhos à sua frente.

A outra a olhava curiosa e com certo desafio. Estremeceu.

Com um sorriso enigmático, a garota sorriu e disse:

-Pensei que não iria ter coragem.

E ante ao olhar estupefato de Matilda, acrescentou:

-A chuva não vai demorar a voltar, é melhor irmos para um lugar mais seguro.

E sem esperar respostas, pegou-lhe as mãos trêmulas, os dedos finos entre os seus, e deus os primeiros passos. Matilda aproveitou o impulso e seguiu com ela. O destino decidiriam no caminho. 

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P.S: Nem sempre a música combina com a história, mas tá tudo bem. 

 

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