O par de meias roxas

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Bernardo bem que tentou se concentrar na cantilena recitada pelo padre e seguido pela congregação  ajoelhada em adoração, ele quis se concentrar na voz do padre, nas palavras recitadas, até mesmo na imagem do jesus crucificado que lá na frente do altar parecia lhe lançar um olhar consternado e quase julgador.

Mas a única coisa em que conseguia se focar era naquele par de meias roxas, sim roxas, totalmente destoante daquele mar de meias negras que adornavam os pés ajoelhados dos rezantes.

Por mais que tentasse se focar, as meias, logo ali na sua frente, o chamavam, como um imã; "Como pode alguém usar uma coisa tão ridícula dessas?! E ainda na Igreja! Que absurdo" isso é o que o velho Bernardo, tão amante da moral e dos bons costumes pensaria, mas o novo Bernardo - sim, novo, porque mesmo que ainda não se tivesse se apercebido da novidade, naquele preciso momento um novo Bernardo estava surgindo por cima daquele outro, como um Id que serelepe se sobrepuja ao rígido Superego - só conseguia admirar a ousadia daqueles calcanhares.

_AAAAmém! - disse o padre

-AAAAmém! - disse a Igreja

E antes que se desse conta já estava a seguir o par de meias rumo à saída da Igreja. Em nenhum momento pensou em olhar acima do que o calcanhar mostrava, em nenhum momento se interessou por quem usava as meias. Apenas elas, as meias, lhe interessavam.

E foi por causa delas que pagou o maior mico que aquela congregação já havia presenciado ao tropeçar escada abaixo derrubando algumas senhorinhas beatas, alguns senhores sisudos e até mesmo ele, o dono do par do meia roxas - e dos olhos mais azuis que Bernardo jamais vira na vida (mas isso ele só notaria depois), como se fosse uma bola de boliche em busca de marcar um alto score.

Bernado, de cabeça baixa, tão roxo quanto as meias, de tanta vergonha, logo ele que prezava tanto a discrição que sua vida pacata lhe fornecia, só conseguia pensar no que Sr. Meias tivesse sofrido com aquele desastre, que em sua mente só perdia para a explosão do Monte Vesúvio. Já até conseguia visualizar as meias despencando escada abaixo, se rasgando, se sujando, ou queira Deus que não, se perdendo para sempre na multidão...Naquele momento até parecia que as meias eram uma entidade à parte, capaz de ter vida, e morte, próprias.

_Precisa de ajuda aí rapaz?

O par de meias roxas estava parado ali na frente, bem rente a sua face, num movimento inquieto que ele seguia hipnotizado antes de tomar coragem de seguir pelO corpo e encontrar Os olhos, os já citados olhos azuis mais incríveis do Universo.

_Ah sim, obrigado - disse ao ser levantado pelOs braços mais fortes do mundo - desculpe, acho que tropecei...

_Ora, disso não há dúvidas - disse o outro, rindo-se.

E então Bernardo pôde presenciar O riso, e logo em seguida A sensação que o riso lhe causava, um sensação tão forte que fora capaz de lhe fazer nascer borboletas no estômago, e ainda as trazer até a garganta, prontas para pularem boca afora bem nO rosto incauto daquele desconhecido, o que com certeza não passaria despercebido aos vários pares de olhares julgadores que já os prescrutavam ...

_Estava distraído, as... as meias..

_Meias?! - o olhar interrogativo faz Bernardo sair do devaneio.

_Acho que foi queda de pressão, tenho sempre - desconversou, sem graça.

_Oh, estás bem? Queres algo?

_Ah, um café cairia bem, creio que me ajudaria muito...aceitas?

_Estás a me oferecer café? - pergunta o Sr. Meias, divertido perante o inusitado convite daquele garoto, que embora tivesse cara de menino já era bem mais alto que ele.

_Estou a te convidar para um - diz o novo Bernardo com uma ousadia jamais antes prevista.

-É, acho que um café cairia bem - disse sem gastar com a decisão mais do que 3 segundos, intrigado pelo rapaz afogueado a sua frente - mas antes vou ao carro trocar esse calçado que está me matando, sapato novo sabe, coisas da minha mãe, até coloquei a minha meia da sorte a fim de não sofrer tanto...

-Gosto das suas meias. - diz Bernardo, já o acompanhando ao carro e ao destino que, através daquele par de meias, os guiava sem que se apercebessem do fato.

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