Levantou-se, espreguiçou-se e foi ao banheiro. Fez o que tinha para ser feito. Seguiu até a cozinha, abriu a geladeira, pegou um suco de maçã. Seguiu até o armário pegou um copo e também um frasco redondo, com um rótulo preto cheio de palavras desconhecidas.
Tirou dois comprimidos da embalagem, enquanto enchia o copo com o suco. A prática faz a perfeição. Engoliu o comprimido com o líquido. Sentiu fome. Seguiu até a mesa e serviu-se do que tinha ali. Pão integral, queijos magros, um copo de leite desnatado e 3 porções de frutas, tudo devidamente pensado para fornecer a ele a quantia certa de vitaminas.
Enquanto comia, lançou um olhar entediado em direção à parede perto da pia da cozinha.
Era possível ver nitidamente enquanto a empregada se apoiava ali, as mãos usando luvas vermelhas de sangue. O avental do uniforme estava em um estado deplorável também. Ao lado dela o padrasto estava ajoelhado. Uma faca na mão e na outra um pano que usava para limpá-la. No chão um homem esvaindo-se em sangue. Ele parecia estranhamente familiar. Com um pouco de esforço o garoto foi capaz de se lembrar de onde. Raramente esquecia um rosto. Aquele homem que agora dava os últimos suspiros gorgolejantes parecia muito com a foto do pai que achara entre as coisas da mãe quando era pequeno.
A empregada percebendo o olhar que vinha da mesa de café pareceu se assustar, soltando um suspiro audível. O homem ajoelhado, percebendo a comoção também olhou para a mesa. Ao ver o olhar impassível do garoto que mastigava placidamente uma maçã verde, lhe deu uma piscadela e voltou ao que fazia.
O garoto não se surpreendeu. Não era incomum que as suas ilusões interagissem com ele. Era o que fazia com que parecessem tão reais.
Há alguns anos ele começara a ser acometido por essas ilusões, que o padrasto insistia em dizer se tratarem de alucinações. Felizmente o padrasto era psiquiatra e logo que começou a namorar a mãe dele fora capaz de perceber os sinais. Engraçado que antes disso ele não conseguia se recordar de ter visto algo muito anormal, tirando um amigo invisível que tivera na infância, e os monstros do armário que insistiam em lhe atrapalhar o sono durante as noites de seus primeiros anos.
O padrasto explicara que essas coisas começavam de maneira sutil e com o tempo pioravam. Os remédios ajudavam a amenizar e impedir que tivesse surtos psicóticos mais graves. Mas as alucinações seriam uma constante em sua vida.
Ele preferia chamar de ilusão, achava o termo mais bonito e menos assustador. Via coisas que não estavam lá. Sua mente era bastante criativa inclusive, o que às vezes o deixava um pouco assustado.
Ele ainda lembrava-se da primeira vez, quando com nove anos pensou ter visto o padrasto jogando o corpo do seu cachorro de estimação na lixeira em frente a casa.
Ele ficara histérico e mesmo que o cão estivesse ao seu lado, finalmente vindo do Pet Shop onde passara a tarde entre banho e tosa, ele não conseguia se convencer. O homem precisou levar ele e a mãe até o lixeiro e mostrara a ele que não havia nada ali. Fora o suficiente para que a mãe autorizasse o início do seu tratamento, ainda mais quando ele começou a insistir que Fido não era Fido, mas um cão impostor. Embora todos os dados apontassem o contrário, ele nunca mais conseguiu confiar naquele cachorro esquisito, que logo teve um final menos trágico, sendo doado para algum amigo da família, para o desgosto da mãe.
Depois disso as coisas só pioraram. Homens e mulheres seminus circulando pela casa quando a mãe não estava. Objetos que aparentemente estavam sumidos, mas quando questionava a alguém lá estavam. Conversas esquisitas do padrasto no telefone. Animais mortos que apareciam de vez em quando nos lugares mais estranhos. Entre outras coisas que preferia nem lembrar, embora dificilmente conseguisse esquecer.
Com o tempo parou de contar a mãe as coisas que via, isso só a deixava preocupada e ficara claro que era tudo coisa de sua cabeça. O padrasto se mostrava um cara bacana, tratava os dois muito bem e obviamente não teria capacidade de trair a própria mulher de maneira tão descarada assim.
A mãe acreditava que ele estava melhor, e pra ele isso bastava. O padrasto psiquiatra, no entanto, não parecia muito crédulo e pedia que ele relatasse em sessões particulares entre os dois tudo o que achava que via ou ouvia. Tudo era gravado e davam margem à muitas anotações cheias de termos difíceis.
As coisas pioraram com a morte da mãe. Ele vira claramente quando o padrasto a sufocara com um travesseiro e depois a jogara na piscina onde foi encontrada pela empregada mais tarde. A mesma empregada que aparecia na maioria das suas "ilusões", geralmente fazendo coisas pouco profissionais com o padrasto ou então ajudando o a recolher os corpos que ocasionalmente ele via.
Quase que ele complicara o pobre homem por conta de seu problema. Fora necessário que ele mostrasse os laudos, além do testemunho de pessoas próximas, para que a polícia desistisse de investigar aquela morte e declarassem aquilo como era de fato: um afogamento acidental.
Depois disso as coisas só pioraram. Ele já vira festas acontecendo por ali que varavam a madrugada. Já vira outras mortes acontecendo bem ali naquela mesma cozinha. Já vira coisas semipornográficas acontecendo pelos cômodos da casa. Já vira coisas assustadoras e já vira coisas muito incomuns. Aliás, a maioria das coisas que ele via podiam ser classificadas como incomuns.
Sua mente era como uma seleção de filmes diversos, presenteando-o com as cenas mais estranhas nos momentos mais inusitados.
Como aquele momento, no café da manhã. Não era a primeira vez. Com o tempo aprendera a ignorar. Ele percebera que isso não fazia com que as coisas deixassem de acontecer, mas sabia que se saísse de perto da cena não conseguiria mais ver nada. Apesar de estar acostumado a ver aquelas coisas, ele preferia evitar e sair de perto, feliz por conseguir uma breve fuga das projeções de sua mente.
Foi o que ele decidiu fazer naquele momento. Terminou de comer. Levantou-se da mesa e saiu. Era quase hora da aula, seu motorista já devia estar a postos.
Na cozinha a cena se mantinha, a despeito da falta de telespectador.
-Você está ficando cada vez mais ousado Ricardo, o moleque estava ali na nossa frente. Uma hora dessas ele vai acabar percebendo as coisas.
-Eu já te falei Ruth, não faz diferença alguma, a gente pode fazer o que quiser nessa casa, pra ele a gente não passa de ilusão.
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Rabiskos
RandomTentativas de trabalhar a escrita, através de temas variados, textos curtos, sem grandes compromissos, sem prazos ou metas, apenas aproveitando qualquer inspiração que surgir. Também posso revisitar algumas histórias ou poemas meus, publicadas em ou...