Fica comigo essa noite?

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-Você está aí?

-...

-Por favor. Tem alguém aí?

- Eu estou aqui Marcela.

-...

-Marcela?

-Você está aqui.

-Estou.

-Fica comigo essa noite?

- Fico.

A resposta arrancou um sorriso cansado dos lábios finos e rachados da garota. A outra não viu. Não viu porque evitava olhar para ela. Não porque a visão era desagradável, embora fosse, mas porque aquele quase cadáver em cima da cama de hospital era um soco dolorido em sua face. A prova de seu fracasso.  Marcela era naquele momento a imagem de tudo o que dera errado no mundo.  Ao menos era assim que parecia a Ana. Ela preferia evitar ficar olhando  para o que a melhor amiga se transformara. 

-Que bom que você voltou. Eu precisava de você.

- Eu sei.

"E eu também preciso de você" pensou Ana.  Não daquela coisa que definhava ao seu lado. Ela precisava da melhor amiga. Aquela com quem crescera no bairro da pequena cidade. Com quem passara as tardes modorrenta  fazendo vários nadas. Com quem compartilhara suas dúvidas e primeiras paixões.  A garota que fora sua primeira paixão.  Que passara.   A amiga com quem dividira as angústias de viver  e o medo do futuro. 

Aquela Marcela ainda existiria em algum lugar ali dentro ou teria morrido de fome? 

Ana sentiu o toque leve e gelado de uma mão ossuda e arrepiou - se. Sabia que a outra já não conseguia enxerga - la.  Mas não queria receber aquele toque. Sentia que se a outra encostasse nela por mais tempo ela simplesmente desmanchar ia.  Faria - se em cacos. 

Talvez fosse melhor assim. Talvez dessa forma ela deixasse de sentir essa dor absurda. Essa perda dilacerante. Essa culpa horrível. 


"Isso não é justo, Marcela! Não é justo! Você disse que ficaria bem.  Você disse que eu poderia ir. Você prometeu..."


Seis meses foram suficientes para que a amiga chegasse nesse ponto. E ela não estava lá. Será que faria diferença?  A dúvida nunca mais a deixaria dormir em paz, ela sabia. 

-Não chora.

-Eu não estou.

A outra ficou quieta e Ana assustou - se ao sentir sua mão pender. Não foi capaz de evitar olhar para a garota - fantasma. Marcela, que sempre fora tão pequena,  agora praticamente desaparecia dentro da camisola do hospital e da coberta que tentava aquecer seu corpo gélido. 
Ana recuou perante a visão que tentara evitar encarar desde que entrara naquele quarto.

No canto esquerdo do quarto insípido, perto da janela, uma senhora com olheiras profundas e um copo de café frio na mão olhou para ela compreensiva. Ana evitou também aquele olhar. Ela não conseguia deixar de culpar aquela mulher, mesmo que soubesse que as coisas eram mais complexas do que isso. Marcela nunca fora exatamente uma filha modelo e provavelmente não facilitara as coisas para a progenitora. Ana fora sua amiga o suficiente pra saber sobre suas imperfeições.  Mas não o suficiente para ser capaz de detectar o pedido de socorro que a voz da outra denotava a cada vez que se falavam. Cada vez menos. Sobre assuntos cada vez mais superficiais. Tal constatação só ajudava a aumentar o bolo amargo e pesado que parecia estar se formando em sua garganta desde que fora chamada.

Sentira-se sendo empurrada da vida da amiga e não fizera nada a respeito.  Tinha colocado a culpa na distância e na vida. Nada que não pudesse ser consertado depois, ela havia pensado.

-Isso é comum. - A voz rouca de fumante ecoou pelo quarto quebrando o silêncio.

Ana olhou interrogativa para a mulher.

-Os desmaios.

-Ah.

-Eu preciso ir agora. Você vai mesmo poder passar a noite?

-Vou.

-Obrigada. Você sempre foi uma boa amiga Ana. 

As palavras doeram mais do que deviam.

Mentira! 

Ela não passava de uma covarde. Quantas vezes não pensara em negar aquele convite? Quantas desculpas ensaiara? Quantas vezes cancelou a passagem antes de finalmente efetuar a compra de fato? 

Alguém mais estava contando?

-Ana? Você está aí?

-Estou aqui.

-Eu queria tanto te ver.

- Não tá perdendo nada. 

-Eu perdi tanta coisa Ana. 

-Eu também. 

- Fica comigo até o fim? Tenho medo.

-Fico. 

A manhã as encontrou como tantas vezes no passado. Abraçadas e dividindo uma coberta pequena demais. A diferença é que dessa vez, só uma delas abriu os olhos para receber o dia que nascia. 

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Tempos atrás eu li o livro "Garotas de vidro (Laurie Halse Anderson)" que me tocou profundamente, tanto pela forma como as palavras foram usadas, quanto pela temática abordada, uma temática que conversa comigo pessoalmente. De alguma forma, há ecos dessa leitura nessa pequena e trágica cena. Para quem consegue lidar com a temática, recomendo fortemente esse livro. A música que usei para ilustrar bem como o filme, cujas cenas aparecem no vídeo, são complementos apropriados, a meu ver. 

Abraços. 

- talvez devesse pedir desculpa pelo tom sombrio dos últimos textos. talvez. não vou. -

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