Para sempre

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You are always here with me,

beloved.

Renato não sabia o quanto mais podia aguentar daquela farsa. O rosto já estava doendo de tanto manter aquela expressão de pesar e já devia ter gastado todo o seu estoque de lágrimas de crocodilo do ano. E ele bem sabia o quanto era importante ter uma reserva sempre à mão.

Pela sala da casa dos pais, austera e impecável, circulavam familiares e pretensos amigos. A maioria nunca tivera o mínimo interesse na vida do irmão. Pelo visto a morte tornava mesmo as pessoas mais interessantes. Malditos abutres, pensou com amargor, sempre rodeando em busca de alguma sobra que possam carregar.

Sentiu vontade de gritar que saíssem dali, que não havia nada ali para eles. Mas não, o bom senso o impediu. Já não bastava que o tachassem de o gêmeo esquisito, o "cara de peixe morto", o que tinha um jeito estranho. Tão diferente do menino de ouro que agora repousava no caixão à vista de todos. O fato de um ser a cara do outro era mesmo uma ironia. Rodrigo sempre fora capaz de fazer muito com o pouco que a genética lhes dera. Ele não.

Ele sabia que todo mundo, especialmente os pais, prefeririam mil vezes que fosse ele a ser enterrado logo mais a tarde. Não que tivessem por ele algum ódio específico. Mas quem é que não preferiria Rodrigo a ele? Talvez somente o próprio. Rodrigo. Não ele. Ele pensava igual todo mundo.

Observou quando a mãe abraçava Cecília, a "viúva", enquanto o pai recebia as condolências dos pais dela. Se perguntou se a mãe ainda a abraçaria se soubesse a forma como ela traíra seu filho queridinho com com cada um dos amigos dele, e mais de um deles ao mesmo tempo, ou o quanto a mulher tentara envenenar Rodrigo contra ela. Não que fosse preciso. Rodrigo podia até parecer muito amistoso e bonachão, mas sempre tinha um jeito de saber das coisas. Pobre Cecília que achava ser tão discreta. Mas o que era dela estava guardado.

A hipocrisia ao seu redor se tornou insuportável no momento em que vira a mulher virar-se com um falso olhar de pena em sua direção. Às favas com os bons modos. Saiu para o quintal e foi acender um cigarro, um último Camel retirado de uma cigarreira de prata, em homenagem ao morto. Era o favorito dele.

Não demorou muito e a velha veio atrás dele o admoestando sobre o papelão que estava fazendo. Era o enterro do seu irmão gêmeo, pelos deuses, quem ligava para as aparências em um momento desses? Pelo visto os pais ligavam. Teve que retornar e aguentar toda aquela palhaçada como o bom garoto que nunca fora.

Só mais um dia, pensou, só mais um dia e estou livre disso tudo.

No outro dia logo de manhã seria a leitura do testamento do irmão, o qual ele sabia de cor, já que o ajudara a redigir. Ele torcia para que a quantia deixada aos pais fosse o suficiente para que o deixassem partir sem reclamar. Provavelmente ainda achariam um absurdo que lhe fosse deixado algo além da mansão em que viveram os últimos meses – obviamente localizada o mais longe possível de sua cidade natal, onde decidiram (sem que ele se opusesse) prestar as últimas "homenagens" ao irmão - , mas esperava que o bom senso e a vontade de que ele sumisse fosse mais forte.

Dois dias depois e ele estava em um avião de volta à sua casa. Tudo ocorrera como esperado. As pessoas sempre foram tão previsíveis. Provavelmente só voltaria a ouvir falar dos pais quando o dinheiro acabasse. Infelizmente, pelo que sabia, isso não demoraria tanto. Mas cada coisa a seu tempo. No devido momento eles também receberiam o merecido. Agora ele só queria chegar em casa, tomar um banho relaxante e esquecer os eventos dos últimos dias.

Algumas horas rodando pelas estradas vazias em direção à colina onde ficava sua mansão e ele finalmente chegara. Agradeceu ao motorista, porque este era um bom empregado, o dispensou pelo dia e seguiu em direção a entrada. No rosto um sorriso. A única emoção real que se permitira demonstrar desde o momento em que saíra dali a quatro dias.

Não se espantou ao perceber a porta destrancada e muito menos ao sentir o aroma que vinham da cozinha. Torta de maçã e canela. Como ele o conhecia tão bem.

-Fiz o seu favorito – disse a figura na cozinha, já preparando uma porção generosa, acompanhada de sorvete e creme, como deve ser. – Coma enquanto me conta tudo.

-Sempre tão curioso... – comentou enquanto se servia da sobremesa. A primeira mordida foi uma explosão de sabor em sua boca e a combinação de texturas e temperatura lhe arrancou um gemido de prazer. Em troca recebeu um olhar satisfeito e orgulhoso. – É até um pecado falar desse tipo de coisa perante uma obra de arte dessas. Ademais, não aconteceu nada que você já não possa imaginar. Até Cecília teve a cara de pau de aparecer, do jeitinho que você disse que apareceria.

O rosto quase bonito, tão semelhante ao dele próprio, revirou-se em desgosto à menção daquele nome. Cecília sempre fora um mal necessário, mas nunca uma presença agradável.

-Realmente, temos coisas melhor a falar, como por exemplo, um novo conjunto de sais de banho que chegou ontem e não vejo a hora de experimentarmos.

-Esse é o tipo de assunto que me agrada – disse Renato sorrindo perante a frivolidade do assunto enquanto levava o prato até a lava louças.

-Senti sua falta – falou Rodrigo às suas costas.

-E eu a sua. Achei que aquilo nunca mais fosse acabar. – respondeu com um suspiro cansado, enquanto se virava e abraçava o corpo frio com carinho. – De todas as coisas que você já me fez passar, irmãozinho, essa foi com certeza a pior.

-Mas agora você está aqui, e eu estou aqui. Para sempre. E isso é tudo o que importa.

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