Vol. I de Histórias sobre aqueles que sobreviveram ao novo mundo*
Por entre os diminutos vãos e frestas da janela era possível ver as sombras lá fora. Escuras massas correndo de um lado para o outro, desordenadamente. Algumas poucas e fracas luzes também. E os sempre presentes sons. Houve um tempo em que eles lhe provocavam arrepios, mas agora eram apenas mais um elemento comum daquelas noites estranhas. Enquanto observava taciturno o pouco que seus sentidos captavam, Lucas se lembrou de certo poema que ouvira uma vez, muito tempo atrás, e que o impactara muito. Sobre se acostumar. "É, a gente se acostuma. Mas não devia." "Não devia." "Não devia!"
O pensamento reavivou novamente a centelha que ele achou que não existia mais em si mesmo. Era um sentimento perigoso, esse de revolta. Perigoso e inútil. Melhor deixar pra lá. Mas pelos deuses, como era bom sentir aquilo! Era a prova de que ele, Lucas, ainda existia ali dentro daquele corpo servil. Ainda havia algo de si que sobrevivera aquilo tudo. Às novas leis, cada vez mais restritas, ao aumento absurdo dos preços e da jornada de trabalho, à falta de respostas e à nova rotina de se trancar dentro de casa a cada vez que o sol se punha, com o coração em pulos, temendo - e lá no íntimo torcendo - que fosse tarde demais.
Cinco anos, cinco anos sem saber como era a noite lá fora. Sem poder espiar as estrelas, sem encontros à luz da lua, sem sentir o ar da noite tocar a pele e provocar ali arrepios deliciosos. Cinco anos vivendo de pequenos vislumbres e da leve brisa que nem toda a paranoia de Ivan conseguia expulsar. Até o cheiro era diferente, ele podia sentir. Seria besteira fingir que não havia nada lá fora.
Lucas não precisava ver as criaturas para saber que elas estavam lá fora. Rondando. Esperando por aqueles que enlouquecidos saíam porta afora a fim de sentir um pouco de liberdade. A mesma liberdade que ele almejava com cada vez mais força. Quanto mais tempo aguentaria? Seria capaz de viver dessa forma por quantos anos mais?
Estaria disposto a pagar o preço por tal ousadia? Muitos de seus amigos o fizeram. Em seu local de trabalho, em seu círculo de amigos, nos almoços de domingo. Lucas os percebia desaparecendo, um a um. Ninguém dizia nada, mas a ausência deles era um lembrete constante de que por mais que insistissem em fingir uma normalidade feliz, as coisas nunca mais seriam as mesmas. A verdade estava lá, estampada em cada sorriso forçado, em cada olhar apagado, em cada filho que nunca mais veriam seus pais... E então eles engoliam a maionese de domingo, elogiavam o belo frango assado e torciam para que o vinho os inebriasse o suficiente para que pudessem resistir mais uma noite.
Ivan era o mais empenhado de todos. Sempre pra lá e pra cá, sorrindo e tentando trazer um pouco de leveza aqueles encontros. Verdade seja dita, sem ele talvez os encontros nem mesmo aconteceriam mais. Mas quem poderia dizer não a Ivan? Ele sabia que com certeza jamais seria o primeiro da lista.
O doce e frágil Ivan, poeta incompreendido, amante da lua e com os pensamentos perdidos em melancolias noturnas. Sempre um sonhador, um cara nada prático. Tão diferente dele mesmo. E, como em todos os clichés que ele sempre abominara, o único capaz de roubar seu coração. Infiltrara-se em sua vida de tal forma que quando Lucas se dera conta já era tarde demais. A ele só restou aceitar o peso de ser feliz.
Quantas noites passaram com as janelas abertas, e a lua como testemunha do casal de amantes... Ivan sussurrando palavras doces em seu ouvido e ele lhe respondendo de forma intensa, sem palavra alguma. E eram almas felizes. Até que a primeira sombra aparecera.
Fora tudo tão rápido.
Enquanto Lucas observava embasbacado a sombra imensa que parecia tomar conta da lua e da noite, até então iluminada, Ivan correra para fechar as janelas. Os olhos assustados e o coração aos pulos, trancando tudo enquanto ele travara totalmente. Fora Ivan quem os salvara naquela primeira noite. Muitos não tiveram a mesma sorte que eles.
"Sorte. Que palavra amarga!" Lucas pensava, enquanto tragava o cigarro eletrônico com fervor e raiva, já que desde que as crianças chegaram ele fora proibido de empestear o ambiente com a fumaça tóxica de seus cigarros comuns. "Nós temos sorte de ter sobrevivido" "Nós temos sorte de que eles só vêm à noite" "Nós temos sorte de que eles não invadem as casas" "Nós temos sorte...". Lucas não se sentia muito sortudo. E por mais que ansiasse por um cigarro de verdade naqueles momentos de isolamento noturno, ele sabia que eles não fariam real diferença.
Ivan, por outro lado, se transformara desde o episódio. Ao invés de ficar lamentando e sofrendo pelos cantos, se tornou uma pessoa prática. Comprou todas as proteções que julgou necessária, colocou diversos alarmes – já que acreditava que um dia eles aprenderiam a entrar – e monitorava os despertadores constantemente para nunca perder a hora. Era ele quem ligava todas as noites para cada um dos amigos e familiares só pra checar se estavam todos em casa e a cada ausência ele apenas dizia as palavras certas de consolo e então anotava os nomes em seu caderninho azul. Fora ele também quem se propora a cuidar dos gêmeos quando estes ficaram sem ninguém. Ele cuidava de todos, os alimentava, os protegia, os amava e fazia com que as coisas fossem suportáveis por mais uma noite.
Pobre Ivan, que não parava nunca mesmo beirando à exaustão. Sempre com um sorriso no rosto como se isso fosse capaz de desviar a atenção das olheiras que formavam círculos cada vez mais fundos e escuros ao redor de seus belos olhos castanhos, reflexo do quão pouco conseguia dormir de fato. Do que ele tinha medo? Que os pensamentos o alcançassem? Que aquela fagulha se mostrasse viva e ele sentisse vontade de sair porta afora? Que os sussurros vindos lá de fora fossem sedutores demais a ponto de não conseguir mais resistir? De que elas lhe tirassem Lucas ou alguma das crianças?
Lucas sentia-se triste ao pensar no que ambos se transformaram. E seria tão fácil, tão fácil acabar com aquilo tudo. Bastava abrir a porta de onde se encontrava agora e deixar que as sombras tomassem conta de tudo. Não haveria mais dúvidas, mais medo, mais angústia, mais perdas. Haveria o nada e o nada parecia tão acolhedor...
Quando deu-se conta, já não era mais o cigarro que havia em sua mão, mas sim as chaves da porta. Chaves essas que estavam encaixadas e prontas para serem giradas. O alarme desligado, sabe-se lá como. Era tão sedutor, tão sedutor, bastava que girasse duas vezes e então tudo estaria feito... as sombras lá fora, do outro lado da porta, sussurravam que seria breve, que seria doce, que ele não teria mais que se esconder, que Ivan não teria mais que se exaurir noite após noite, que as crianças nem perceberiam, que o cachorro poderia ir também, que...
Então ele ouviu o riso alto de Ivan vindo da sala, um riso leve e cristalino, um riso que fazia tanto tempo ele não ouvia. Logo as crianças o acompanhavam e até o cachorro latia alegremente. Devia ser mais alguma daquelas comédias idiotas que Ivan tinha o dom de descobrir e que as crianças adoravam. Verdade seja dita, ele também gostava muito, especialmente porque naqueles breves momentos ele conseguia sentir como parte de algo bom.
Lucas olhou mais uma vez para a maçaneta e tomou a decisão. Por Ivan e pelas crianças, ele viveria mais uma noite.
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Hello Pessoas. Ando com umas ideias aí sobre um mundo possivelmente pós apocalíptico. vamos ver no que vai dar, conforme os trechos forem surgindo, eu vou postando aqui.
*Preciso de um título melhor. Aceito sugestões.
Aos que ainda seguem meus rabiskos, aquele abraço apertado e uma dica: não confiem no que a escuridão lá fora sussurra a vocês.
P.S: Fica aqui o agradecimento ao moço @HenriqueRodriguez por ter me ajudado a revisar e me incentivado a postar esse.
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Rabiskos
AcakTentativas de trabalhar a escrita, através de temas variados, textos curtos, sem grandes compromissos, sem prazos ou metas, apenas aproveitando qualquer inspiração que surgir. Também posso revisitar algumas histórias ou poemas meus, publicadas em ou...