Louça lavada, sem ruídos

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Marisa olhou para a pia cheia de louça e suspirou. Seria mais um dia daqueles. Arrependeu-se momentaneamente por ter pedido que o marido fizesse o almoço. Ele cozinhava razoavelmente bem, mas era do tipo que não se importava em sujar uma quantidade absurda de louça e muito menos do tipo que lavava qualquer coisa. Só cozinhava por que gostava e só quando a esposa pedia com carinho.

Começou por organizar a bagunça, sabia por experiência que isso facilitaria a tarefa. Enquanto tentava empilhar tudo na bancada da pia e algumas na mesa da cozinha pequena (mas felizmente bem arejada) ela procurava manter-se atenta aos ruídos que vinham dos cômodos ali perto por onde as crianças circulavam entre gritos, choros e risadas. O som de algum desenho não identificado era o background. Ela preferia muito mais ouvir suas músicas no radiozinho que ficava em cima da geladeira, mas sabia que isso a distrairia das crianças.

Com tudo relativamente separado e categorizado ela começou. Umedeceu a esponja, colocou umas gotas de detergente na parte amarela. Experimentou a espuma. Não satisfeita, acrescentou mais algumas gotas. Agora sim, estava do jeito que precisava. Começou pelos talheres, mais especificamente pelas colheres, suas favoritas. Percebeu que tinha espuma demais, o que era um saco na hora de enxaguar e impedia que a limpeza fosse bem sucedida. Mas continuou mesmo assim. Apenas um desafio a mais, e ela adorava desafios.

Na altura em que terminava de enxaguar as facas, já se preparando para passar para os copos, Marisa começava a entrar nos estágios iniciais de relaxamento que só uma atividade dessas era capaz de lhe proporcionar. Lavar a louça era para Marisa como que um equivalente à Yoga. Que Laura, a irmã mais nova e adepta da prática, não a ouvisse, mas enquanto a água e espuma corria pelo seus dedos, ela sentia uma paz e uma tranquilidade únicas. Certa vez, sentiu-se próxima de alcançar o nirvana enquanto esfregava uma panela de inox ao ponto de poder se espelhar nela.


Marisa sempre fora, desde menina, quando apenas auxiliava a mãe nas tarefas domésticas, muito caprichosa. Não era muito afeita a fazer certas atividades, mas quando as fazia era capaz de uma entrega sem igual. Fazia com gana, com foco e com qualidade. A mãe adorava se gabar de suas habilidades domésticas, o que deixava nela uma sensação agridoce. Gostava dos elogios, mas se ressentia que a mãe não falasse com o mesmo orgulho de suas outras conquistas, como as acadêmicas e profissionais. Sem falar que com essa dinâmica, as outras duas irmãs acabavam por se safar da maioria das atividades, já que ela era a melhor nisso mesmo. Mas não sabia agir diferente. Com ela era assim, já que é pra fazer, que fosse bem feito então.


Enquanto lavava os pratos e as vasilhas de plástico, Marisa aproveitou para pensar na vida. Avaliou sua relação com o marido Estevão, que embora não estivesse de todo ruim, bem que poderia melhorar aqui e ali. Questionou-se também se colocar a filha no balé era melhor opção do que no judô. Talvez o melhor mesmo fosse colocar o menino no balé e a menina no judô. Sorriu com a ideia. Adorava acalentar ideias semi revolucionárias. Lembrou-se também da mãe, que falecera a pouco mais de dois anos e o coração se apertou de saudades. Uma vida inteira buscando a aprovação dela e agora ela não estava mais ali para lhe julgar, lhe corrigir ou mesmo lhe parabenizar. Pensou também nos rumos que sua tese estava tomando e se questionou se era aquilo que ela pretendia realmente. Enquanto esfregava com afinco uma frigideira, a fim de tirar dali qualquer resquício de gordura, também se permitiu pensar no orientador gostosão que a deixava encabulada em quase todos os encontros. Suspirou fundo ao lembrar daqueles contornos másculos e daquele sorriso charmoso e também da forma firme com que se posicionava durante suas discussões acadêmicas. Não deixou que o pensamento fosse para mais longe do que isso. Sempre fora adepta da fidelidade em seus relacionamentos, não seria agora, beirando os quarenta que ela mudaria seus valores. Mas que o professor Armando era um pedaço de mau caminho, ah isso era. No entanto, era melhor começar a desviar o pensamento para o aumento da inflação, fato que se refletiria diretamente no seu bolso e no estilo de vida da família.

Eis que chegou uma das partes que ela menos gostava: a panela de pressão. Naquele dia ainda com um bônus especial: o marido havia feito o favor de atender um telefonema de negócios enquanto o feijão cozinhava e com isso quase metade se perdera. Metade essa que estava firmemente grudada ao fundo da panela, exigindo de si toda sua experiência e habilidade. Pegou uma colher e iniciou o trabalho, deixando a mente se voltar para as próximas férias. Queria ir à praia. Fazia pelo menos uns dois anos que não iam e seria a primeira vez da caçula ter essa experiência. Tão melhor do que ir visitar os sogros na fazenda deles em Goiás. Claro que o fato dela não se dar muito bem com eles era um fator a mais a pesar nessa decisão, mas ninguém precisava saber disso. Enquanto raspava, esfregava, raspava mais um tanto, pegava mais palha de aço e esfregava mais um pouco ela catalogava todos os locais conhecidos que se encaixavam no orçamento da família e também aproveitava para pesar outros aspectos como conforto, acessibilidade, etc. Depois teria que verificar com mais calma no computador, pensou enquanto enxaguava a panela que nunca estivera tão brilhante antes.

Finalmente, tudo pronto. Encarou com orgulho a louça limpa e a pia organizada. Agora só faltava todo o resto da casa, pensou murchando um pouco. Maldita hora em que demitira a empregada. Tudo bem que ela não fazia as coisas nem de perto tão bem como ela, mas mesmo assim era uma mão na roda. Teria que procurar outra se quisesse ter tempo de terminar seu mestrado e começar o doutorado. Teria que ser uma que também se desse bem com as crianças e não ligasse muito para as suas peraltices.

As crianças!

Se deu conta, de repente, de que além do barulho sempre presente da televisão da sala, que agora parecia mais uma profusão de chiados baixos, ela não era capaz de ouvir mais nenhum ruído. De fato, não sabia precisar qual fora o último momento em que ouvira algum barulho deles. Não era possível, deixara que a mente se perdesse entre a louça e os pensamentos e esquecera de que tinha que ficar atento a eles. Enquanto secava a mão e seguia para o corredor que a levaria aos outros cômodos chamou pelas crianças. No começo com calma, calma que logo foi se transformando em insegurança ao não receber nenhuma resposta de volta. Insegurança que começou a virar desespero quando ao invés de encontra-los fazendo alguma arte - que sempre acontecia quando estavam muito quietos- só encontrou os cômodos vazios.

Procurou pela casa toda, chamou, gritou, ameaçou, implorou, e nada. Não havia sinal delas. Olhou para as chaves do portão, continuavam no mesmo lugar, ali ao lado da porta da sala, longe do alcance das mãozinhas curiosas. As bicicletas no quintal, o triciclo da pequeninha ainda virada no canto da sala. Nada estava faltando, nada além das crianças. Pegou as chaves e foi para o portão e seguiu pela rua. Em seu desespero, mal percebeu o silêncio ensurdecedor que havia por toda a parte. Pelas ruas nenhum sinal, nem das crianças e nem de ninguém. Nenhum dos vizinhos apareceu para atender o seu chamado, nem mesmo os cachorros que costumavam latir a noite toda lhe atrapalhando o sono apareceram para a típica recepção barulhenta. Angustiada tentou ligar para o marido, mas a ligação caiu sem que houvesse retorno. Ligou para a emergência, nada. Nervosa, tentou todos os números que havia na sua agenda. Nenhum atendeu. Sem saber o que fazer, continuou a andar a e a gritar, mas nem mesmo o eco de sua voz pôde ser ouvido.

Foi então que tudo ficou escuro.

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