Capítulo 1 - O quinto sentido

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Nascemos, originalmente, com cinco sentidos. Audição, olfato, tato, paladar e visão. Há duas formas de interpretar minha vida. A primeira, é que eu não tenho um desses sentidos. A segunda, é que eu tenho quatro sentidos muito mais apurados que o da maioria das pessoas.
Eu não enxergo. Mas antes que você pense em se compadecer, isso nunca foi problema pra que eu corresse atrás dos meus sonhos.
Alguns dizem que eu não consigo detectar ironias. Posso dizer – sem falsa modéstia – que no alto dos meus 32 anos, eu consigo. Nem todo mundo percebe como altera o tom de voz, o ritmo da respiração, ou como faz sons com o próprio corpo quando quer enganar. Eu ouço tudo isso com muita clareza.
Sou chef de cozinha. O paladar é o sentido que mais valorizo. Desde pequeno, foi o paladar que me uniu à minha família e meus amigos.
Resolvi levar isso para a vida. Decidi que o meu propósito seria fazer as pessoas sentirem o que eu sentia através do paladar.
Naquele dia, eu saía do restaurante com Toni, meu cão-guia. Já passava das duas da manhã e minha casa ficava a algumas quadras do restaurante, por isso, eu costumeiramente voltava sozinho e a pé.
A cidade era grande, mas o bairro era tranquilo e eu gostava de caminhar de madrugada.
Eu sentia que Toni estava agitado. Devia estar faminto. Acelerava o passo, puxava mais que o normal. E eu ri. Pensei que ele pudesse estar brincando.
De súbito, Toni correu demais e, com o solavanco, eu caí. Gritei por ele, mas não ouvia mais o som de seus passos sempre presentes. Sozinho, no meio da rua, de madrugada e sem meu fiel companheiro. Foi questão de tempo para o medo tomar conta de mim. Logo eu, tão centrado, sempre tão lúcido e tranquilo, entrei em pânico.
Não conseguia gritar. O pânico se converteu em um choro convulsivo e eu sentia que as lágrimas escorriam pesarosas pelo asfalto gelado. Eu não estava machucado, mas estava com medo de levantar. A rua estava deserta. Nem sinal de Toni.
Com os nervos em frangalhos e no ápice do meu medo, lembro de ter desfalecido ao ouvir passos se aproximando.
Não sei precisar quanto tempo passou, mas senti o meio-fio encostar no meu dorso, ouvi o uivo arrependido de um cão que tinha fugido para pegar qualquer comida no final da rua e, por fim, minhas narinas foram tomadas por um perfume de flores doce e encantador, ao mesmo tempo em que meu ombro sentia repousar delicadamente uma mão pequena e de dedos finos nada ameaçadora.
Poucos segundos depois, uma voz me perguntou:
- Você não consegue me ver?
Era a voz mais linda que eu já tinha ouvido. Fui tomado por um sentimento bom. Voltei, aos poucos, ao meu estado normal. Respondi:
- Eu não enxergo, moça.
Ela suspirou. Passaram-se alguns segundos e ela retomou a palavra:
- Eu estava caminhando por aqui quando vi você caído. Me aproximei correndo para ver se você estava bem. O cachorro veio uivando logo atrás. Sou enfermeira estagiária do hospital aqui perto e acabei ficando sem carona hoje. Meu turno acabou, mas eu já chamei uma unidade para vir aqui buscar você e ver se está tudo bem, ok?
Mal acabou de dizer isso e eu ouvi o carro se aproximando. Diversos homens conversando me tiraram cuidadosamente do chão e me colocaram sob uma maca – suponho que tenha sido, ao menos. Antes de se despedir, ela se aproximou e perguntou meu nome.
- Érico. – respondi. Muito obrigado por ter me ajudado.
- Você mora muito longe daqui? – ela perguntou.
Respondi que não, que apenas a duas quadras dali. Dei o número do prédio e ela me garantiu que deixaria Toni com o porteiro. Agradeci. Já longe, ela lançou um "de nada". Toni parecia ter gostado muito dela, não latiu sequer uma vez. Não sei por que, mas confiei nela. Com toda a minha força. Tive a certeza de que ela faria o que dizia.
No hospital, depois de constatar que eu havia sofrido uns poucos arranhões, a equipe me levou para casa. Tranquei a porta e fui dormir, embora o medo ainda doesse fisicamente em meu corpo. Cochilei jurando que podia sentir o perfume de flores que me acalentou o coração naquele momento tão difícil.
Acordei de novo e a insônia me tomou. O perfume de flores. A mão doce sobre meu ombro. A voz mais linda.
E eu nem tinha perguntado o nome dela.

Dias que eu não viOnde histórias criam vida. Descubra agora