Capítulo 50 - O fim sempre é um novo começo

3.4K 235 141
                                    

- Aparentemente, está tudo certo. São só 14 semanas ainda, mas já posso afirmar com certeza que vocês serão pais de uma menina linda.
O tempo parecia passar mais lento. Diana e eu não nos olhamos no primeiro momento. Acho que, naquele instante, assimilamos com muita verdade que, em breve, seríamos pais. E eu nunca senti tanto amor por alguém na vida, mesmo sabendo que ainda faltavam alguns meses para conhecer a minha filha.
Depois do primeiro impacto da emoção, Diana e eu nos abraçamos. Nem ouvimos a médica dizendo que ia nos deixar sozinhos por alguns instantes. Ficamos naquele abraço por um bom tempo. Eu sentia o soluço do choro contido de Diana e ela afagava minha nuca com um carinho de quem diz: “a gente vai ser muito feliz”. Quando saímos do abraço, eu olhei em seus olhos e disse:
- Ela vai ser a criança mais amada do mundo, Diana. Eu sei que somos capazes disso. O nosso amor me inspira a acreditar nisso. Ela vai ser muito feliz, Diana.
Diana, ainda muito emocionada, me disse:
- Eu sempre quis muito ser mãe, Érico. Mas nem no meu sonho mais lindo pensei em encontrar um pai como você. Eu sei que nem tudo são flores, mas eu sei que a gente vai ser capaz de reconstruir tudo que a rotina insistir em abalar.
Diana e eu saímos dali e entramos em um táxi, onde viajamos abraçados até o nosso apartamento. A noite daquele dia foi especial. Estivemos ainda mais próximos do que imaginávamos ser possível. Nos meus braços, Diana sorria e iluminava minha alma. Nossa troca transcendia o amor. Era plenitude.
Ficamos quase que a noite toda acordados fazendo planos para o bebê que vinha ali.
- Já pensou em algum nome? – perguntou Diana.
- Já. E você? – respondi.
- Também.
- Gosto de nomes simples. – disse eu.
- Eu também. – respondeu Diana.
- Eu pensei em Ana... – dissemos em uníssono.
A surpresa pela sintonia culminou em um riso gostoso e demorado. Diana retomou a palavra.
- Eu pensei em Anna com dois “n”.
- Ah, não – respondi – eu não gosto de complicar as coisas. Prefiro com um “n” só. – estava um pouco contrariado, mas era só para ver Diana falando daquele jeito lindo que tinha para me convencer. Não foi diferente naquela hora.
- É que eu acho que Anna, assim, com dois “n”, tem um equilíbrio perfeito, sabe? Parece um nome que começa e termina de um jeito tão harmonioso, com apenas duas letras repetidas em locais diferentes... é tão bonito de escrever... é tão... ah, Érico, é tão perfeito... para de ser chato. – e riu.
Diana já tinha me convencido na primeira justificativa. Tudo que eu desejava para minha filha era equilíbrio. Justamente para poder passar pela vida de um jeito mais leve, coisa que o pai nem sempre conseguiu. Eu já estava apaixonado pela ideia, no fim das contas. Diana sabia disso e, no fim das contas, nossa noite terminou do jeito mais feliz possível. Se pudesse nos ver dormindo, diria que dormimos sorrindo.
Faltavam ainda cerca de seis meses para que Anna chegasse.
Durante esse tempo, além de continuar trabalhando feito louco pensando em tudo que eu precisava providenciar junto com Diana para a chegada de nossa pequena, pensei muito na minha vida. Diana seguiu trabalhando até o dia do parto, que aconteceu no meio de um plantão no hospital. Mas isso é coisa para contar mais para frente.
Nos seis meses que seguiram, eu visitei Fábio com mais frequência do que imaginaria. É lógico que eu ainda não confiava totalmente nele e fazia isso mais para ver como Toni estava do que por qualquer outra coisa. No fundo eu tinha perdoado Fábio, mas não queria que ele fizesse parte da minha vida de forma tão ativa. O fato era que Fábio tinha mudado muito. Toni pareceu revigorá-lo como nunca. Fábio vivia com muita dificuldade, bem diferente do médico endinheirado que conheci. Na medida do possível, Diana e eu ajudávamos com algumas coisas, mas Fábio parecia ter descoberto o verdadeiro valor do trabalho. Com a ampla capacidade de negociação que tinha na época de médico ao também auxiliar na compra de material hospitalar, acabou despertando o interesse de uma empresa que negociava importações. Foi ali que Fábio começou a reconstruir a sua vida de um jeito muito bonito. Poderia ganhar muito mais se tivesse seguido na medicina, mas parecia levar a vida de uma forma muito mais leve. Era estranho, mas Fábio parecia mais feliz agora do que antes. Diana validava minha teoria.
Toni seguia feliz como sempre. Me recebia como um velho conhecido, mas já tinha um amor inacreditável por Fábio. Toni talvez tenha sido o ser mais nobre que já conheci. Que ser humano abriria mão do conforto e tranquilidade de ajudar alguém que ajuda desde sempre para estar ao lado de alguém que ninguém mais quer se aproximar? Talvez a gente tenha muito mesmo a aprender com os animais. Mesmo. Toni era um anjo na minha vida.
Dona Alice, minha mãe, estava radiante com a ideia de ser avó. Ligava para Diana todos os dias e elas se falavam por horas. Em vários dias, nem pedia para falar comigo. Eu não me importava. Achava incrível o fato de elas duas se darem tão bem. Para falar bem a verdade, eu não sei o quanto elas sofreram juntas durante minha cirurgia. Tenho certeza que dentro do coração das duas existia uma cumplicidade à qual eu jamais teria acesso. As mulheres parecem mesmo ter um oceano dentro dos corações. Talvez elas falem em um código que a gente nunca vá entender. Por isso eu as admiro tanto.
E Antonia?
A menina mais intrigante que eu já conheci.
Por ela, senti amor.
Por meio dela, conheci o ódio.
Senti acolhimento.
Senti medo.
Antonia me levou aos extremos. Foi protagonista de alguns dos momentos mais bonitos e mais assustadores da minha vida. Só por isso, seria uma figura inesquecível. De fato, eu nunca mais a veria. Eu senti isso de certa forma naquela última vez em que nos vimos. Havia uma tristeza em seu olhar. Gravada em mim, ficou sua última fala:
“- Fique tranquilo. Isso tudo aqui vai se resolver. Eu fui sincera quando disse que você e Diana são perfeitos um para o outro. Por isso mesmo, não vou deixar nenhuma injustiça ser cometida. Seja muito feliz, Érico. Que a sua visão te proporcione enxergar ainda mais do que você já enxergava com a alma. Nunca vou esquecer você.”
Havia uma pergunta que martelava minha mente: Antonia era uma pessoa boa ou ruim?
Depois de muito refletir, foi fácil definir: era os dois. Assim como todos nós. Temos um lado perverso, um lado alegre, um lado bondoso, um lado triste. Somos um polígono. Nossa missão é tentar se equilibrar no meio de tantas emoções e desafios que a vida coloca na nossa frente. Nem todo mundo consegue lidar bem com isso. Não se tratam apenas das pessoas que cometem coisas terríveis como Antonia em conluio com Fábio. Falo de todas as pequenas perversidades que cometemos diariamente com quem amamos. Podem ser palavras, gestos ou atitudes. Temos que lidar diariamente com o melhor e o pior de nós. O que eu desejava para Anna, que ainda nem tinha chegado, era que ela fosse capaz de mergulhar de cabeça nos sentimentos bons. Os ruins nos tiram vitalidade. Os bons promovem longevidade de corpo e de alma.
Diana.
Meu Deus.
O que dizer a respeito dela que eu já não tenha dito ou sentido?
Diana era minha metade. Minha metade real. Com qualidades e defeitos (os segundos quase imperceptíveis), mas alguém por quem eu já tinha provado a mim mesmo que daria a vida por ela no dia em que Fábio tentou nos matar. A grande diferença de nós dois para qualquer outro casal era que, antes de poder vê-la, eu já a sentia. E eu amava sentir o quanto Diana era linda. Vê-la foi uma mera comprovação do que eu já sabia dentro do meu coração.
Diana e eu tínhamos uma parceria que mantinha nossa relação como algo importante em nossas vidas. Tínhamos nossos pequenos problemas, mas eu realmente acordava todas as manhãs ao lado de quem queria acordar. Acho que o mesmo se aplicava a ela. A gente queria fazer dar certo, e isso fazia toda a diferença.
Seis meses depois daquela primeira ultrassonografia, Diana estava no hospital atendendo quando a bolsa estourou. Me ligou chorando e dizendo:
- Tá na hora, papai. Anna está chegando. Corre pra cá!
Eu estava no meio do expediente no restaurante. O salão estava lotado. Eu saí correndo e tirando o uniforme no meio de todos. Enquanto corria, gritava a quem quisesse ouvir:
- MINHA FILHA VAI NASCER! MINHA FILHA VAI NASCER!
Já um pouco distante da porta, ouvi aplausos e meus colegas de cozinha gritando na porta.
Cheguei ao hospital e nem passei pela recepção. Eu já sabia onde era a sala de parto e ignorei toda e qualquer pessoa que estivesse por perto. Um médico me parou com veemência pronto para me dar a maior bronca, mas me reconheceu e riu. Me deu uma roupa hospitalar e, depois que a vesti, abriu uma porta dizendo:
- Sua mulher está aqui.
Entrei com passos lentos, um pouco assustado. Diana gritava muito e eu me preocupei. Contudo, internamente, eu sabia que precisava passar alguma tranquilidade. Ela já estava em trabalho de parto. Segurei sua mão já suada e beijei sua testa. Diana me observou com olhos cansados. Eu me aproximei de seu ouvido e disse com ternura:
- Vim ajudar a recepcionar a Anna com você. Só falta mais um pouco. Eu tô aqui, Diana. Eu tô aqui. Confia em mim.
Depois de um último esforço de Diana, eu vi a menina mais linda do mundo.
Éramos três.
Anna foi trazida para perto de nós e eu finalmente entendi o que era ser pai. Eu finalmente entendi a sensação de ter certeza que faria qualquer coisa, - QUALQUER COISA – por alguém. Anna era a nova e mais genuína razão da minha vida. Quando vi Anna nos braços de Diana e aproximei meu rosto para que estivéssemos todos juntos, eu entendi que o amor é a força mais suprema do mundo. Não importava mais o que acontecesse na minha vida. Não importava se eu morresse em cinco minutos. O simples fato de ver minha filha chegar ao mundo era o evento que valia a minha existência. Zerei a vida.
- Ela é linda, Érico... linda... – disse Diana.
- Linda como você. – respondi.
Depois de algum tempo juntos, Anna foi para a maternidade e Diana precisava repousar. Antes de me despedir por alguns instantes das mulheres da minha vida, olhei nos olhos da dona do perfume de flores e disse:
- Eu vou te amar pra sempre. Não importa o que venha. Eu vou te amar pra sempre. Você me deu o maior presente e o momento mais lindo da minha vida.
- Eu agradeço ao universo e a Toni todos os dias. Não fosse ele te derrubar, eu não estaria vivendo isso hoje. – riu Diana, para depois concluir. – Você é o homem mais incrível que eu já conheci, Érico.
Fui visitar Anna na maternidade. Pelo vidro, observava sua fragilidade. Pensava que aquele pequeno ser ali dependia muito de mim. Minha vida nunca teve tanto sentido.
Voltei ao quarto onde Diana dormia e, horas depois, a família estava completa. Quando Anna chegou, Diana ainda dormia. Foi o momento oportuno para que tivéssemos a primeira conversa entre pai e filha. Tomei aquele pedacinho de gente nos braços e disse:
- Anna... seu pai te ama muito. Você é fruto de um amor muito bonito. O papai daria a vida por você. Saiba isso, literalmente, desde o dia 1.
Algumas lágrimas caíram dos olhos desse pai de primeira viagem. Depois, concluí:
- Você vai ser muito feliz. Isso eu te prometo.
Diana despertou e me viu com nossa filha no colo. Abriu um sorriso largo e, com um olhar travesso, fez sinal para que dividíssemos a cama com ela.
Coloquei Anna com todo o cuidado no centro da cama e me deitei com cuidado ao lado das duas.
Ali estávamos nós, prontos para o futuro.
Acima de tudo, ali estava eu. Com o maior sentido que poderia ter dado à minha vida.
////
No dia seguinte, saí do hospital para ir até o cartório cuidar de algumas questões do registro enquanto Diana estava com a bebê e minha mãe no quarto. A reação de Dona Alice ao ver a neta é algo que precisaria de um livro isolado para poder contar, sendo assim, resumo dizendo que eu nunca a vi tão feliz.
Enquanto eu estava fora, Diana recebeu um cartão postal no hospital. O cartão dizia assim:
“Pode parecer absurdo, mas eu aprendi muito com você. Aprendi a me valorizar como mulher, a encontrar alguém que sentisse o mesmo por mim. Apesar de tudo que aconteceu, eu gosto muito de você hoje, Diana. Estou na Itália e prestes a me casar. Não conte nada disso ao Érico. Eu queria mesmo era falar isso tudo pra você e, principalmente, dar os parabéns por essa criança linda que deve estar chegando. Amigos do restaurante me contaram. Sejam muito felizes. Meus últimos votos foram muito reais. Um abraço de gratidão, Antonia.”
Dona Alice perguntou de quem era aquele postal para ouvir de Diana:
- É de uma pessoa que eu aprendi a gostar.
///////
Enquanto me dirigia ao cartório, pensei se seria bom ou não dizer a Diana que durante aqueles nove meses eu tive mais uns dois ou três apagões noturnos como aquele de alguns meses antes. Em todas as vezes, eu fui ao oftalmologista e refiz todos os exames. A princípio, nada era constatado, mas eu percebia no olhar do dr. Claus uma preocupação em me deixar ciente de que esse era um efeito que não se esperava.
Por fim, decidi que esse já não era mais um peso tão grande na minha vida.
O amor que eu sentia por Anna era maior do que qualquer sentido.
Se eu deixasse de enxergar, ao menos teria na lembrança aquela imagem inesquecível de ver a minha filha nascer. E isso era maior do que tudo que eu podia imaginar.
Os anos se passaram e eu pude ver Anna crescer, Diana amadurecer e meus primeiros cabelos brancos aparecerem. Eventualmente, os apagões voltavam e me assustavam.
De fato, eu não sabia se teria minha visão intacta até o fim da vida.
Só que, de certa forma, isso era bom.
Era por não saber se eu acordaria vendo no dia seguinte que eu aproveitava cada beijo de Diana, cada sorriso de Anna, cada olhar terno de dona Alice, cada colorido dos ingredientes da minha cozinha.
Eu vivia cada dia como se fosse o último porque, depois de mais de 30 anos de dias que eu não vi, cada nova manhã que eu via alvorecer era uma verdadeira bênção.
De certa forma, o risco de não poder ver meus dias de novo era algo que me fazia ser mais intenso.
Esse relato pode parecer triste, mas não é.
Vejo tanta gente que tem visão perfeita, mas que não vê nada...
Se me pedissem pra dar um único conselho para a vida de todo mundo, eu não teria dificuldades. Meu mantra de vida tem poucas palavras:
ABRA OS OLHOS. Se os do rosto não te mostrarem nada, abra os da alma.
Eu ficaria aqui falando um pouco mais com vocês, mas Anna, aqui no meu colo, já disse que é muito chato ficar tanto tempo na frente de um computador. Disse agora que prefere brincar de boneca. Agora disse que está com fome. Agora, perguntou o que eu estou escrevendo aqui.
Agora, tem uma mulher linda entrando aqui no quarto irritada porque já disse três vezes para o papai e a filhinha recolherem os brinquedos da sala e ninguém deu ouvidos. Ainda assim, é a mulher mais linda do mundo.
Agora, eu vou parar por aqui porque é hora de fazer algo para as meninas comerem no almoço.
Vou parar por aqui porque é hora de fazer aquilo que a vida tem de mais espetacular: a rotina ao lado de quem se ama.
FIM.

Dias que eu não viOnde histórias criam vida. Descubra agora