Diana e eu chegamos ao hospital às 5h45min. Alguns documentos finais foram preenchidos. O restante já havia sido encaminhado semanas antes e realmente faltava muito pouco para resolver tudo. O médico estrangeiro já estava no país, pronto para a cirurgia naquela noite.
O dia passou arrastado. Eu precisava ficar lá para que todos os trâmites acontecessem dentro do previsto. Antes do meio-dia, me encaminharam a um quarto.
Almocei lá mesmo. Diana me ajudou a colocar as vestes necessárias e também me ajudou com a comida. Minha cabeça fervilhava, pensando milhares de coisas.
A primeira delas era o fato de não estar apavorado com toda a situação.
Todo o medo que eu tinha de ambientes hospitalares e, principalmente de médicos, parecia se esvair quando Diana estava por perto. Ela de fato tinha me ajudado a superar um trauma tão encerrado no meu inconsciente que eu cheguei a pensar que jamais viria à tona.
Antonia.
Em momentos como esse, quando a gente sabe que existe uma possibilidade de morrer, ideias importantes chegam à nossa cabeça. Aprendemos em função da pressão.
Eu podia dizer com alguma sinceridade que amei Antonia.
Afinal, quem pode rotular o amor como uma sequência lógica de quesitos que simplesmente foram preenchidos?
Acredito, sinceramente, que se Diana não tivesse aparecido mais uma vez, nossa história iria longe. Existem amores que são repentinos e avassaladores, como o meu por Diana. Mas existem também aqueles que chegam sem pretensões e transformam a nossa vida devagarinho, fazendo com que nos apaixonemos dia após dia.
É claro que tudo que aconteceu mudou muito minha percepção sobre Antonia, mas isolando os meses que vivemos juntos, eu não poderia dizer que o que eu sentia por ela não foi amor. Ela me transformou. Me ajudou a ser alguém melhor, mesmo em condições muito adversas. Foi um ombro acalentador do meu sofrimento. Antonia foi um amor que poderia ter sido. Definitivamente. De alguma forma, eu me sentia grato àquela menina com quem convivi. Pela inconsequente que me prejudicou, eu não sentia nada senão ressentimento. Eram duas pessoas diferentes.
Fábio.
Eu o odiei por estar prestes a se casar com Diana. Eu o odiei por tê-la jogado de um carro. Eu o odiei por ter me agredido. Eu o odiei por ter invadido meu apartamento e ameaçado a vida da mulher que mais amei na vida.
Mas junto com o áudio que ele enviou a Diana explicando suas tortas razões, eu percebi que odiá-lo me tornava não muito diferente dele. É claro que eu não sairia por aí ameaçando ninguém. Não é da minha natureza. Mas o ódio é capaz de transformar mais do que o amor. Mais rápido, pelo menos. Se Diana tivesse continuado casada e apaixonada por ele, será que tudo isso aconteceria? Será que Fábio não era fruto de uma resposta errada dos traumas de sua vida? Será que a força da circunstância fez apenas liberar alguém que ele já era ou toda uma construção já estava edificada para responder da forma que ele aprendeu que era correto quando se sentisse frustrado?
Eu seguia aterrorizado com as atitudes recentes de Antonia e Fábio, mas não conseguia parar de pensar em tudo isso. No porquê de transformações tão significativas e extremas.
A verdade é que eu não conseguia parar de pensar na vida. Em como esse jogo todo é complexo e com situações difíceis em todos os momentos. Na minha vida, apesar dos míseros trinta e dois anos que eu carregava nas costas, o jogo já chegava aos 45 do segundo tempo totalmente em aberto. Depois da cirurgia, eu podia empatar com a cegueira e continuar da forma que vivi todos esses anos. Isso não me assustava. Eu me orgulharia de ter tentado ao menos. Eu podia fazer um gol antes da prorrogação e vê-lo em cores (eu queria tanto saber o que eram cores...). Eu podia vencer a cegueira. E isso era mágico. É como um time de várzea vencer uma seleção campeã do mundo. Mas ainda havia a possibilidade de o jogo terminar ali. Nos acréscimos, a cegueira poderia me jogar na gaveta – literalmente e, assim, terminar meu jogo para sempre. Isso sim me assustava agora que faltavam poucas horas para a cirurgia.
É por isso que eu pensei tanto na vida naquelas horas que se passaram. Eu não sabia se ela seguiria. E isso faz a gente pensar muito no que fez e no que deixou de fazer. A quem devia perdoar e não perdoou. As bobagens que dissemos, as preocupações que tivemos, o sofrimento por antecipação. Aqueles problemas que pareciam insolúveis. Nada disso importava mais. O que importava era sair dali comemorando o título de vencedor sobre uma dura adversária chamada cegueira.
Depois de algumas horas de silêncio, Diana me trouxe de volta.
- Érico... está quieto há tanto tempo... tá tudo bem?
- Estou. – respondi. – Estava aqui pensando na minha vida.
- Que coincidência – disse ela. – Também estava pensando na minha.
- Diana... – interpelei – se acontecer alguma coisa...
Ela me interrompeu abruptamente.
- Nada de ruim vai acontecer. Mas eu quero dizer algo importante.
Ela hesitou alguns instantes e continuou:
- Eu agradeço todos os dias por ter te conhecido. Por ter te ajudado naquela madrugada. A vida foi muito torta comigo, Érico, mas conhecendo você eu aprendi ou pelo menos confirmei algo muito importante. O que não é da gente, não acontece. Não importa que a gente não entenda, como eu não entendi meu sentimento por você. Em algum momento, tudo faz muito sentido. Eu não queria estar em outro lugar senão aqui e agora. Do seu lado. Eu te amo.
///
Diana.
Diana era meu sol. Tudo que eu tinha aprendido sobre o amor desde que a conheci valeu cada provação pela qual passei. Se eu morresse naquela noite, morreria feliz por tê-la comigo. Eu não sabia o que era claridade. Ao menos, não podia enxergá-la. Mas Diana me fazia chegar muito perto de experimentar a sensação. Ela era a luz da minha vida.
Depois daquela declaração, ela secou as lágrimas que brotaram do meu rosto e entendeu que o que eu queria dizer não cabia exatamente em palavras. Me deu aquele beijo de lábios ternos e carinhosos que eu tanto amava. Eu nem percebi o adiantado da hora.
Já eram 20h. A equipe adentrou o quarto para me levar a um bloco cirúrgico especial. Diana não podia ficar comigo. Só depois de concluída a cirurgia. Depois de mais um beijo, concentrei meus sentidos no perfume de flores que ficava cada vez mais longe.
Poucos minutos depois, eu já estava em uma sala de cirurgia com pelo menos dez pessoas conversando. O médico americano perguntou se eu falava inglês e eu assenti. Ele fez questão de falar comigo:
- Mr. Érico, we’ll gonna start now. You’ll gonna fall asleep quickly. But don’t worry. We are with the best team to make this happen. – disse ele.
- I’m really happy to hear that. Thank you so much. – respondi.
O doutor Claus concluiu com as últimas palavras de que me lembro:
- Acreditamos muito que vai ser um sucesso, Érico. Fique tranquilo. Você está em boas mãos.
- Obrigado, doutor. – respondi.
Foi então que senti a injeção perfurar meu braço e, gradativamente, adormeci.
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Dias que eu não vi
RomanceLIVRO NA LONGLIST DO WATTYS 2018 Érico é um chef de cozinha deficiente visual que sempre lutou com muita determinação para alcançar seus objetivos, até que Diana entra em sua vida com um amor fulminante que o transforma. A história é narrada pelo pr...