Capítulo 47 - Três

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Eu não prestei muita atenção ao que Diana dizia porque estava absorto em meus próprios pensamentos. Por esse motivo, ela ajoelhou-se à minha frente e, me olhando nos olhos, repetiu a pergunta:
- Ei... eu te perguntei quem disse que somos só nós dois?
Eu continuava sem prestar a devida atenção ao que acontecia.
- Eu sei que você não tinha a mesma ligação que eu, mas Toni era meio que uma pessoa aqui nessa casa. Não sei se tomei a decisão certa de deixá-lo com Fábio... mas você viu como ele me olhou, não viu?
Naquele instante, a charada óbvia de Diana finalmente fez sentido para mim. Interrompi imediatamente minha fala:
- Espera... com “não somos só nós dois”, você quer dizer que...
Não consegui completar sem deixar uma lágrima escorrer simultaneamente a um gesto instintivo de colocar a mão sobre o ventre da dona do perfume de flores que salvou a minha vida tantas vezes.
Diana sorriu.
Eu sorri.
Diana acenou com a cabeça.
E eu lhe dei um beijo demorado e carinhoso como nunca tinha dado antes.
Imediatamente, fui transportado de volta para a noite em que fizemos amor pela primeira vez desde que eu estava enxergando. Eu senti que não era apenas a conexão visual. Algo me ligava de uma forma mais forte a Diana. Naquele longo mês em que eu a via passar na calçada todos os dias, o desespero só não me tomava porque, em algum lugar do meu ser havia algo que me dizia que estávamos ligados para sempre.
Tudo agora fazia sentido.
Diana estava grávida de um filho meu.
Depois de muitos gestos que valeram mais que milhares de palavras, ela retomou a fala:
- De alguma forma, depois daquela noite, eu sabia que havia algo diferente acontecendo. Não tomei consciência imediatamente, mas eu me senti muito mais ligada à você. Não sabia bem por quê. Agora sei.
Ela respirou fundo e continuou:
- Eu sei que é meio inesperado, que talvez não estejamos inteiramente preparados, que o momento não é dos melhores, mas eu sempre quis muito ser mãe, Érico. E, acredite. Sempre quis um pai como você para um filho meu.
/// Aquelas palavras me emocionaram profundamente. Eu não tinha medo de ser pai. Para ser sincero, nunca tinha pensado muito na possibilidade, mas a primeira sensação assim que Diana deu a notícia era a de que a minha vida passava a fazer sentido a partir dessa nova realidade. Eu não me assustei, não tive medo, não pensei em um milhão de coisas. Eu pensei em ser pai.
E isso me preencheu como nunca antes na vida.
Segurei Diana em meu colo e, com zelo, acarinhei seu ventre enquanto dizia:
- Uma nova vida vai nascer das nossas duas. Alguém que é fruto do amor que sentimos um pelo outro. Isso pode soar brega mas, agora que é real na minha vida, me parece a coisa mais bonita do mundo. Obrigado por me fazer feliz de tantos jeitos diferentes, meu amor.
Ficamos abraçados por muito tempo. O mundo lá fora parecia ter parado completamente e, naquele momento, só o nosso amor existia.
Empolgada, Diana começou a fazer ligações e marcar consultas. Poucos minutos depois, já estava no sofá com o celular pesquisando preços de bercinhos em lojas virtuais.
Ela estava totalmente envolvida com a ideia de ser mãe. Isso, combinado com suas demais virtudes, a tornava ainda mais incrível na minha vida. Diana era a mulher da minha vida. Agora, seria mãe de um filho meu.
Faltavam algumas coisas na despensa e eu estava com vontade de respirar ar puro para combinar com a sensação interna de que seria pai. Sendo assim, disse a Diana que iria ao supermercado e depois daria uma volta na praça. Ela preferiu ficar em casa descansando.
Fui ao supermercado que, depois que passei a enxergar, se tornou o meu lugar preferido para pensar. Não sei se é a monotonia de passar por dezenas de gôndolas iguais com milhares de produtos diferentes, ou então o fato de que as pessoas estão ali procurando o que precisam para o seu dia a dia, mas eu me sentia bem nesse ambiente. Muitas vezes demorava o dobro do tempo só pensando em coisas que nada tinham a ver com as minhas compras.
Cada um com suas manias, não é mesmo?
Pensei no quanto minha vida mudou desde aquela noite em que Diana me socorreu.
Antonia se mostrou apaixonada por mim, tivemos uma história, a história terminou, retribuí Diana e a salvei também, ela me revelou que estava apaixonada por mim, Antonia e Fábio se uniram e me causaram muitos problemas, Diana foi embora de casa, voltou e, principalmente, eu passei a ver meus dias. Agradeci ao universo por tudo que me aconteceu. De bom e de ruim. Tudo foi uma construção para que eu chegasse àquele momento e pudesse ir adiante. Agora, eu seria pai.
Com um sorriso no rosto e as compras na mão, saí do mercado celebrando comigo mesmo a minha felicidade. Foi quando passei pela casa de Fábio.
Enquanto ia me aproximando, pensei no quanto nossas posições tinham se alternado nos últimos tempos. Ele casou com a mulher que eu amava, era um médico bem-sucedido. Perdê-la fez com que se perdesse também. Hoje, eu era feliz com a mulher que era dele, ele tinha jogado a carreira fora, cometido crimes e, agora, estava cego e não tinha mais ninguém. Exceto meu melhor amigo, Toni.
Era engraçado como a versão nova de Fábio, totalmente acuado e com dificuldades para tantas coisas, em nada me lembrava o Fábio que me bateu, que tentou me matar. Isso se justifica pelo fato de que eu o conheci de verdade somente na segunda situação. E isso, não sei por que, me dava uma vontade muito grande de ajudá-lo e quebrar o ciclo de violências, vinganças e medição de forças.
Em um impulso, entrei pela porta da frente, mais uma vez destrancada, e vi Toni correndo, pulando e levando uma bolinha de volta para Fábio, que ria alto. Assim que percebeu minha presença, Toni correu em minha direção e lambeu-me as faces com um ânimo que não tinha há semanas. Fábio também carregava um semblante um pouco melhor do que o do dia anterior. Foi ele que começou a falar:
- Pela animação do cachorro, deve ser você, Érico...
- Sou eu sim, Fábio. – respondi – Só vim ver como Toni estava.
- Diana está com você? – perguntou ele.
- Não. – respondi. – eu vim sozinho. Algum problema? Você tem algum assunto para tratar com ela? – disse eu com certo desprezo que me escapou da ponta da língua.
Fábio ignorou minha ironia e disse:
- Sabe... em outros tempos, se isso aqui acontecesse, eu diria que você é idiota, Érico. Diria que no seu lugar eu jamais faria isso com alguém que me odiasse, que tivesse atentado contra mim. Mas o que você está fazendo comigo é muito pior do que uma agressão, uma vingança. Você está mostrando que é melhor que eu. E você nunca terá ideia do quanto isso dói.
/// Eu percebia que a parte mais emocional de ter perdido a visão já parecia ter diminuído ao ponto de Fábio recuperar um pouco da personalidade. Já não se tratava mais como vítima, mas falava sem filtros constatações sobre si mesmo e tudo que aconteceu:
- Acredito que nunca seremos próximos. Não faria o menor sentido. Mas você me mostrou ontem que é um homem de bem, como eu achei que era quando me casei com Diana. Eu percebi que parecia ter acontecido algo antes do casamento, mas achei que fosse aquele nervosismo de noiva. Só que já era você. Ela já estava apaixonada por você. Quando eu tive certeza disso, perdi a cabeça. Senti muita raiva. O resto você já sabe bem. Já entende onde a minha raiva me levou. Perdi minha mulher, minha profissão, minha fortuna, minha dignidade e respeito e, pra fechar com chave de ouro, minha visão. Eu era tudo, Érico. Agora não sou nada.
/// Eu não me sentia a pessoa certa para ser o conselheiro motivacional de quem tentou me matar, mas tentei falar algo que pudesse ajudar de alguma forma. O silêncio reinou por alguns segundos até eu criar coragem de falar:
- Fábio, isso que você está vivendo há poucos dias, eu vivi por 32 anos. Você achava que eu era um perdedor, alguém menor por conta disso. Eu nunca quis ser melhor que ninguém. Só quis ser igual. Talvez você ainda tenha alguma chance de ser bom, aí embaixo de todo esse lixo que acumulou nos últimos tempos. Você pode não estar enxergando com os olhos, mas acho que agora vai conseguir olhar pra dentro. Toni vai te ajudar. Já está ajudando, né?
Fábio ignorou um pouco minha fala, mas concluiu:
- Olha, eu sou péssimo nisso, mas... obrigado. Você merece Diana muito mais do que eu, e isso não é nada além de uma constatação. Se quiser levar o cachorro, leve. Não precisa fazer isso por pena de mim.
- Não faço por você – respondi –, faço por ele.
Mais uma vez, a dureza das minhas respostas me surpreendia. Por que eu falava assim com Fábio se eu mesmo escolhi estar ali?
Respirei fundo e tentei consertar:
- O que eu quero dizer, Fábio, é que apesar de tudo que me fez, eu finalmente pude perceber que existe algo de humano em você. Nunca desejei que ninguém ficasse cego, mas talvez essa seja a oportunidade que a vida te deu pra ser mais gente, cara. Eu vivi muito tempo assim e, por isso (engoli em seco antes de propor), se quiser conversar sobre isso, eu posso tentar te ajudar.
Depois de mais alguns instantes de silêncio, peguei o que tinha em mãos, me despedi de Toni e fui embora.
Antes de fechar a porta, ouvi um tímido “obrigado” ecoando atrás de mim.
Passei pela praça e resolvi me sentar.
Eu ia ser pai.
Eu precisava ter a capacidade de perdoar os outros para tirar de mim o que era ruim.
Olhei de longe para a sacada do meu apartamento. Diana estava sentada lá e não me percebeu.
Fiquei observando a mãe do meu filho lá no alto e, quando dei por conta, a noite escura já tinha chegado.
A noite seria mais escura do que eu imaginaria.


Dias que eu não viOnde histórias criam vida. Descubra agora