Muitos me perguntaram como eu não entrei em pânico no momento em que percebi que podia enxergar. Eu não sei explicar muito bem, mas posso responder dizendo que era mágica aquela sensação de tocar em coisas conhecidas e associar cada objeto à sua imagem. Eu estava me alfabetizando visualmente. Não conseguia sentir medo. Só uma alegria desmedida que não sei se consigo traduzir em palavras. A primeira pessoa que eu vi na vida foi Diana. E, com a visão recém adquirida, eu não conseguia parar de olhar para ela.
Assim que acabou aquela epifania da minha descoberta da janela, da luz e, posteriormente, de Diana, minha amada do perfume de flores chamou os médicos para que conferissem de perto o resultado. Todos comemoraram muito. Eu não conseguia me mexer, mas não por alguma dificuldade motora. Eu não conseguia parar de observar. Aquilo que eu não podia tocar imediatamente me intrigava e Diana passou horas me explicando o que era uma lâmpada, o que era uma cortina, o que era um brinco, o que era uma maçaneta. Eu queria correr contra o tempo. Queria aprender a ver tudo que não vi em 32 anos. Os médicos disseram que eu já estava bastante estável e que não precisava mais ficar ligado a aparelhos, mas que precisaria ficar mais um ou dois dias em observação para garantir que tudo sairia como o previsto.
Depois que todos foram embora, Diana continuou a me explicar o que era cada coisa. Em alguns instantes, ela chorava. E eu achei muito lindo o que acontece quando uma pessoa chora. Para entender Diana ainda melhor, eu continuava tocando seu rosto, seus braços, suas pernas e utilizava minha recente visão para acompanhar as sensações do meu tato. Cada segundo era de um aprendizado inacreditável. Diana me explicava e colocava em minhas mãos milhares de objetos para que eu os reconhecesse agora pelo olhar. Eu estava tão eufórico com aquela nova realidade que levei um baque quando ouvi Diana dizer:
- Érico, tem algo que você ainda não viu.
- O quê? – respondi.
- Você precisa se ver pela primeira vez. Me dá a honra?
Meu coração saltou para a garganta. Minha euforia era tanta que eu sequer considerei olhar para mim mesmo. Como ainda estava me situando no espaço e na visão, não me dei conta de olhar para mim mesmo além das mãos. Eu ainda me familiarizava com os movimentos de cabeça que permitiam que eu enxergasse ao meu redor e, até mesmo, meu próprio corpo. Eu sempre soube o princípio básico de um espelho. Mas nunca imaginei que poderia estar diante de um de maneira efetiva. Devagar, Diana me ajudou a sair da cama e me levou até a frente de um armário e, com um movimento que eu acompanhei pelo som, abriu a porta do armário. Aos poucos, a imagem de alguém foi se desenhando. Eu imediatamente levei as mãos ao rosto e toquei os olhos. A imagem à minha frente me imitava.
- Esse é você, Érico. Esses somos nós dois.
Para me compreender melhor, pousava a mão sobre cada parte do meu rosto, associando a sensação à imagem. Era uma situação estranhamente espetacular. Pela primeira vez na vida, eu estava me vendo. Agora eu sabia como era um corte de cabelo à máquina. Sabia como era a barba. Sabia a profundidade exata e a textura de meus olhos, nariz e lábios. Entendi como a roupa repousava sobre o corpo. Eu me entendi. E aceitei o que estava ali. O eu que eu supunha ser se encontrava com o eu que de fato era.
Diana não conseguia controlar a emoção. Chorava diante de cada nova descoberta minha. Na sequência, entendi o que significava olhar nos olhos de alguém. Ainda chorando, Diana sorriu para dizer:
- Eu nem sei o que te dizer, Érico. Talvez eu esteja mais feliz que você. Você não sabe o quanto eu aprendi nas últimas horas só olhando pra você se descobrindo, entendendo as coisas. Algo que é tão simples pra todo mundo, mas pra você é totalmente novo... eu espero que você seja muito mais feliz a partir de agora, meu amor. Você merece mais do que qualquer um. – disse a dona do perfume de flores.
- Não tenho muita autoridade sobre o assunto... - respondi -, mas acho difícil que eu veja alguém mais linda que você.
Rimos. A risada dela era tão linda de ver quanto de ouvir. Nos abraçamos em um beijo quente e demorado. Eu não fechei os olhos. Eu não queria mais dormir. Eu só queria ver tudo que pudesse. Abraçado a Diana, dançamos devagar, mesmo sem música. Aquele momento era nosso. De certa forma, eu estava ali pela força positiva que ela exerceu sobre mim. Pelo bloqueio que me ajudou a quebrar. Eu tinha muito mérito sobre tudo, mas não teria conseguido tanta coragem sem o apoio incondicional de Diana.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. De repente, uma porta se abriu e uma pessoa entrou. De uma forma muito parecida com a minha (agora eu podia comparar), ela colocou as mãos no rosto sem dizer nada. Poucos segundos depois, tirou as mãos do rosto e olhou para mim. Eu ainda não entendia as emoções faciais muito bem, então não sabia o que ela estava sentindo. Diana estava em silêncio ao meu lado. Um pouco assustado, perguntei:
- Quem é você?
- Sou eu, meu filho... você pode me ver, Érico?
Eu não consegui responder. O pesadelo me veio à mente com clareza. O medo que tive de envolvê-la em tanta confusão com Fábio, Antonia e Diana. O medo de que se preocupasse demais com minha cirurgia. Minha mãe estava na minha frente. E eu abracei como nunca abracei ninguém antes.
Eu achei que pudesse poupá-la de qualquer sofrimento, mas aquele abraço me disse sem palavras que mães sabem de tudo. Sempre.
Contida, dona Alice me falou:
- A sua felicidade é a minha felicidade, meu filho. Eu sempre sonhei com esse dia. Por favor, não se afaste de mim de novo...
- Nunca mais, mãe... nunca mais... como você soube de tudo?
- Já que você não me apresenta minha nora, ela mesma se apresentou... – disse ela. – Diana me ligou para dizer que estava aqui com você. Disse que encontrou meu número no seu telefone.
Diana interpelou:
- Eu sabia que alguém como você não podia ter tão pouco contato com a mãe, Érico. Ela precisava estar aqui pra ver isso. Eu a encontrei e pedi que viesse para cá. Não precisa nos apresentar. A gente já se conhece melhor do que você imagina.
Todos rimos. Minha cabeça chegava a doer. Um pouco pelo efeito colateral da cirurgia, outro tanto pelo excesso de informação. Diana percebeu e imediatamente me ajudou a me acomodar na cama.
O erro que cometi com minha mãe agora era muito claro. Mas antes, era algo tão soterrado debaixo do meu orgulho e do meu medo de pedir ajuda que eu sequer percebia que me comportava dessa forma. É engraçado como determinadas coisas acontecem para que a gente possa perceber comportamentos automáticos.
Em nenhum momento até ali eu tinha me dado conta de que meu afastamento não tinha relação com o medo de que dona Alice sofresse, mas sim com o medo que eu tinha de me tornar totalmente dependente.
Minha mãe estava ao meu lado, como naqueles dias terríveis em que oftalmologistas incompetentes disseram que eu não tinha jeito. Ela sempre me disse para não acreditar neles. Ela estava certa.
Diana segurava minha outra mão. Ela também estava ao meu lado. Ela tinha consigo o meu coração.
E assim, adormeci ao lado das duas mulheres que, cada uma a seu modo, me fizeram renascer.
Um sono tranquilo e, pela primeira vez, com um sonho cheio de imagens sobre tudo que tinha acontecido.
Era, de fato, o dia mais feliz da minha vida.
Eu ainda não sabia, mas precisava me preparar para os desafios que essa nova condição me traria dali para frente.
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Dias que eu não vi
RomanceLIVRO NA LONGLIST DO WATTYS 2018 Érico é um chef de cozinha deficiente visual que sempre lutou com muita determinação para alcançar seus objetivos, até que Diana entra em sua vida com um amor fulminante que o transforma. A história é narrada pelo pr...