Os dias que se seguiram foram de uma tentativa desesperada de retomar o foco para o que era mais importante. A cirurgia que podia mudar minha vida. Eu não externava isso para Diana, mas tinha sim medo de aumentar a estatística de cirurgias mal-sucedidas. Acima de tudo, medo de não enxergar nem viver mais nada.
Entretanto, havia uma parte de mim que seguia confiante. Foi nisso que me apeguei para diminuir a ideia do que vivi com Fábio na minha sala de casa dias antes (a propósito, assim que ele recebeu alta foi preso novamente).
Diana estava claramente nervosa. Passava os dias a me dar orientações importantes do que eu deveria fazer no dia da cirurgia e falava muito sobre tudo. Àquela altura, eu já a conhecia o suficiente para dizer que ela estava tensa com toda a situação. Não sei o quanto a tensão era em função da cirurgia e quanto seu corpo ainda tremia com o susto que Fábio nos deu.
Pensei também, naqueles dias, no que Fábio disse naquela mensagem de voz. Era real demais para ser só mais uma armação. É lógico que nada justificava seu comportamento, mas agora pelo menos eu entendia alguma motivação para uma revolta tão incisiva e violenta.
Eu não tive pai, mas tive tios. Sei como funciona a pressão para que a gente não chore. Sei o quanto eles exigem que a gente se defenda com violência de qualquer coisa. É claro que, no meu caso, isso sempre vinha acompanhado de um “menos o Érico, que não pode enxergar. Ele é exceção”. De minha parte, usei a raiva que tinha dessa repressão para dar o melhor de mim e me transformar em um bom profissional, em uma boa pessoa. Fábio simplesmente respondeu aos instintos levando-os às últimas consequências. Tudo isso era lastimável e, repito, eu não acho que nada do que Fábio tenha feito seja justificável. Mas agora, pelo menos, eu entendia melhor suas motivações psicológicas.
Outra parte dos meus pensamentos foi tomada pelos venenos de Antonia. Eu não conseguia entender como uma menina tão doce fora capaz de cometer tantos erros por uma rejeição. Eu sei que isso dói. Me culpei muito quando a deixei para ficar com Diana. Mas jamais imaginei que ela pudesse se transformar tanto.
Agora, a poucas horas de entrar na sala de cirurgia, a minha vontade era de ligar para ela e perguntar sem rodeios por que ela plantou a dúvida em mim, por que envenenou tanto suas palavras para me deixar balançado? Se a resposta fosse o grande clichê de que “foi por amor”, eu não acreditaria. A cegueira de Antonia diante da frustração era ainda maior que a minha cegueira natural.
De toda forma, cheguei à conclusão de que eu não devia mais me envolver em nenhum nível com essas pessoas.
Diana estava no plantão e eu estava sozinho em casa. Era quinta à noite, mas eu não trabalharia porque no outro dia, muito cedo, eu iria ao hospital para providenciar a internação e, pontualmente às 20h a cirurgia teria início.
Perdido entre todos esses pensamentos, ouvi o celular tocar a notificação de uma mensagem de voz.
Acessei os menus em braile e coloquei a mensagem para tocar. Era Antonia, mais uma vez.
Mas dessa vez, o tom era bem menos irônico/ameaçador. Ela anunciava uma despedida. Falando com uma voz contida e um nítido nó na garganta, a ouvi dizer:
- Esse é o último contato que faço com você, Érico. Sei que a sua cirurgia é amanhã. Eu estou indo embora. Pra longe. Não que isso te interesse de alguma forma, mas quis avisar que estou definitivamente saindo da sua vida. Lamento que não tenha seguido meus conselhos e esteja fazendo a cirurgia mesmo assim, mas, diante disso, eu só quero dizer que desejo muita sorte. Espero de todo meu coração que você possa enxergar. É claro que você não acredita em sequer uma palavra do que digo, mas espero que um dia entenda que, dessa vez, estou sendo sincera. Me desculpe por tudo. Eu andei muito desequilibrada nos últimos tempos. Um beijo. Boa sorte. Adeus.
Essa onda de redenção dos grandes vilões da minha vida mais me preocupava do que alegrava. A mensagem de Antonia era estranha. Estranha demais. Mas eu resolvi agir como se não a tivesse ouvido. Não queria me preocupar com isso antes do dia mais importante da minha vida.
Quando Diana voltou para casa, mostrei o áudio. Ela ficou em silêncio por um longo período. Por fim, disse com certo ceticismo:
- Deus queira que ela esteja falando a verdade.
Durante o jantar, Diana segurou minha mão e perguntou:
- Está preparado?
- Estou. – respondi. – Na verdade já estou ansioso. Queria que já fosse sábado.
- Tenha calma, Érico. Você precisa ficar tranquilo. Tenho muita esperança também, mas precisamos ter os pés no chão.
Ela ainda falava com muito cuidado na escolha das palavras. Prossegui:
- Eu quero muito ver você, Diana. Mais do que tudo na vida.
- Eu sei, Érico. Também quero que você me veja.
Diana ficou em silêncio por alguns segundos. Por fim, suspirou e concluiu:
- Escuta... sobre o que aconteceu no começo da semana... já passou, tá? Eu não quero que você vá para a cirurgia preocupado com a gente. Nem que eu quisesse poderia encontrar alguém tão incrível quanto você. A vida é meio torta, mas em momentos como esse, como esse momento agora, Érico, eu percebo que se eu olhar com mais carinho pra vida, ela se endireita.
Fiquei em silêncio e apenas sorri. Diana deixou cair algumas lágrimas que eu senti ao abraçar seu rosto com minha mão. Tentei acalmar:
- Ei... vai dar tudo certo. Eu te amo, Diana.
- Eu te amo, Érico. Vai sim. Obrigado por mudar minha vida.
- Obrigado por me ajudar a mudar a minha. Obrigado por me dar coragem. Obrigado por você ser você, Diana.
Diana estava cansada e dormiu profundamente. Já eu... bem... eu não dormi.
Depois de horas que pareceram anos, o despertador tocou. Eram 5h da manhã.
Era hora de ir para o hospital.
Era hora de saber se minha vida mudaria para sempre.
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Dias que eu não vi
RomanceLIVRO NA LONGLIST DO WATTYS 2018 Érico é um chef de cozinha deficiente visual que sempre lutou com muita determinação para alcançar seus objetivos, até que Diana entra em sua vida com um amor fulminante que o transforma. A história é narrada pelo pr...