Capítulo 41 - O passar do tempo

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Depois de mais dois ou três dias de hospital, tive alta. A volta para casa foi incrível. Observei o trânsito, observei a chuva, o sol, pessoas correndo, pessoas conversando. Não conseguia prestar atenção ao que Dona Alice e Diana diziam. Minha atenção estava plenamente voltada ao que meus olhos traziam de informação.
Minha mãe ficou hospedada conosco por mais algumas semanas. Depois de muito conversar, aparamos todas as arestas que tinham ficado da minha omissão, do quanto tinha escondido minha vida dos olhos dela. Mães sabem que não adianta tentar tirar algo de um filho quando ele não está disposto a dizer. Dona Alice, como sempre, era muito sábia.
Depois daquelas semanas, ela voltou ao interior me fazendo prometer que a visitaria ao menos uma vez por mês.
A deixamos na estação rodoviária e ela se foi, não sem antes deixar escorrer mais uma lágrima consistente da face. Agora eu conhecia as lágrimas de longe. Para minha felicidade, praticamente todas as lágrimas que já tinha visto eram de alegria. O sofrimento ainda não tinha se apresentado para mim em imagens. Isso me fazia amar ainda mais minha nova condição. Minha mãe chorava por, talvez pela primeira vez na vida, me deixar para trás com alguma tranquilidade no coração.
No mesmo dia em que voltei para casa, conheci Toni. Meu grande amigo parecia perceber que algo de muito diferente me acompanhava. Parecia ainda mais amoroso e satisfeito comigo, mas já não se animava com o fato de não precisar sair comigo todos os dias. Eu o levava para passear quase que diariamente, mas o olhar que ele me lançava toda vez que eu saía sem ele era algo de partir o coração. Eu aprendi a identificar esse olhar. E essa era uma das coisas que eu não gostava de ver.
Pouco tempo depois, voltei ao restaurante. Eu parecia um aprendiz, mas mais uma vez, o tato me ajudou muito. Olhar para todos os ingredientes se misturando, entender a ligação entre o cheiro e a imagem, a textura e o sabor, era algo que me fazia apaixonar ainda mais pela profissão. Todos os meus colegas ficaram muito animados com meu retorno e eu me sentia pleno de mim. Agora, quem sabe, os objetivos que eu ainda não tinha alcançado poderiam ser mais palpáveis. E visíveis.
Era engraçado como minha vida se dividia entre dois períodos muito distintos. Sei que entrei no hospital em um dia e passei a enxergar no outro. Mas aquela noite da cirurgia parecia ter durado anos. Talvez fosse um efeito colateral da grande mudança que aconteceu naquelas horas.
Todos esses pensamentos me acompanhavam em uma noite qualquer no restaurante. Eu prestava atenção em tudo que fazia mas, naquela noite específica, lembro de sentir uma nostalgia grande com relação a tudo. Tudo que aconteceu na minha vida em pouco mais de um ano. De uma noite desesperadora voltando do trabalho ao socorro de Diana. Da paixão repentina ao coração quebrado. Da revelação de Antonia sobre seus sentimentos por mim ao dia em que ela colocou Fábio dentro da minha casa para me agredir. Me acordando de meus pensamentos, um colega próximo me perguntou enquanto cortávamos alguns legumes:
- E Antonia? Teve notícias dela? Há bastante tempo que não ouço falar. – perguntou ele.
Eu hesitei um pouco, mas respondi:
- A última vez que ouvi dela, soube que estava se mudando, pra longe. – respondi como se esse recado não tivesse sido da própria para mim.
Confesso que lembrar de Antonia mexeu um pouco comigo. Não podia negar que agora, enxergando, tinha muita curiosidade de saber como ela era. Apesar de tudo que me fez, eu tinha alguma gratidão à contribuição que ela teve no meu passado. De alguma forma, Antonia me tornou mais forte. E isso eu não podia mudar. Era um fato. Por mais que tivesse errado muitas vezes depois, ela tinha me ajudado a crescer.
Voltei para casa sozinho e a pé. Era engraçado sentir a brisa da madrugada combinada com um espetáculo de árvores balançando, a lua no céu acompanhada de milhares de estrelas, os prédios com alguns apartamentos ainda de luzes acesas, outros tantos sendo somente um ponto preto na madrugada. Naquele mês, eu me empenhei muito em aprender e absorver tudo que pudesse: objetos, cores, movimentos, expressões. Em um mês, eu já conhecia a vida em imagens. E isso era mágico.
Naquele mês pós-cirurgia, minha euforia era tanta que eu sequer percebia um certo afastamento entre Diana e eu. Percebendo a necessidade de aproximação que eu deveria ter com minha mãe, ela assumiu um plantão duplo cobrindo as férias de uma colega. Eu disse que não havia necessidade disso, mas Diana me disse que queria mesmo fazer isso para juntar um dinheiro a mais. Com tantas coisas para descobrir com a recém adquirida visão e a presença de minha mãe dividindo comigo aquele momento, eu nem vi o mês passar. Diana saía para o plantão no horário em que eu chegava do restaurante e, com isso, só conseguíamos dar um beijo de despedida e perguntar rapidamente se estava tudo bem. Nossos trabalhos tinham a desvantagem de serem sete dias por semana. Ambos éramos apaixonados por eles. E o afastamento foi um tanto natural.
Quando cheguei ao apartamento na primeira noite em que estávamos sozinhos, Diana me esperava no sofá. Sentei ao lado dela e iniciei uma conversa.
- Oi. Vem sempre aqui? Faz tempo que não te vejo por esses lados. – brinquei. Diana riu e respondeu.
- É, ultimamente ando meio sumida, mas é por uma boa causa.
Eu passei a mão em seu rosto. Ao mesmo tempo, reconheci nela uma expressão que ainda não me era muito familiar.
- O que você tem? – perguntei.
- Nada. Está tudo bem. – disse ela.
- Tem alguma coisa estranha. Tem certeza que está bem? – insisti.
- Quando você não enxergava era mais fácil esconder as preocupações. – disse Diana, rindo mais uma vez.
Depois de alguns instantes de silêncio, perguntei mais uma vez:
- É sério. Me diga o que está te preocupando.
Diana jogou os cabelos para detrás das orelhas e, olhando para baixo, começou a falar:
- Eu tenho medo que você não precise mais de mim, Érico. Sei que isso é um pensamento lamentável. Você não tem que estar comigo porque precisa de mim. E eu não poderia aceitar se fosse assim. Mas sabe quando a gente sente um aperto no peito? Um medo de que, com a mudança do outro, tudo mude? É lógico que é uma bênção que a cirurgia tenha dado certo, e não tem ninguém mais feliz do que eu por conta disso. Mas às vezes o coração da gente parece que dá uns avisos estranhos... estou com o coração apertado, e não gosto disso. Principalmente por achar que essa nova condição de vida pode te fazer refletir sobre a gente. Te fazer perceber que talvez não me ame tanto quanto me amava antes.
Pela primeira vez desde que nos conhecemos, eu via Diana claramente insegura.
Tomei-a pelas mãos, olhei no fundo de seus olhos e respondi:
- Você realmente acha que existe a possibilidade de eu não amar a mulher que me fez, literalmente, abrir os olhos? Eu soube que te amava desde a primeira vez que senti o seu perfume de flores. Desde o primeiro dia em que senti ciúmes de você. Desde a primeira vez que te beijei. Todos os dias são o recomeço do meu amor por você, Diana. Sempre foi você. Sempre.
Diana me olhava atentamente e deixou algumas lágrimas escaparem pelo rosto. Depois de alguns instantes de silêncio, me beijou com paixão. Por mais estranho que parecesse, eu queria ficar de olhos abertos para ver o seu rosto me beijando. Assim, tão de perto, Diana era ainda mais bonita. Em nosso quarto, eu apreciei cada curva, cada cacho e cada beijo da mulher que eu mais amei na vida. Entre nós dois, transbordava um amor que não se media, mas que o corpo sentia e minha visão absorvia com precisão de detalhes. Tivemos muitas noites antes de eu poder enxergar e, apesar de saber que ali havia uma diferença por eu poder ver o nosso amor acontecer, havia algo mais. Eu não conseguia entender do que se tratava, mas sabia que era algo muito forte. Foi a noite mais linda da minha vida e, até hoje, me lembro dela com clareza.
Depois do amor, adormecemos profundamente.
O plantão de Diana no dia seguinte começava às 11h da manhã. Depois de tomarmos café juntos e celebrarmos com muita cumplicidade aquele reencontro tão bonito e, pela primeira vez, visto pelos dois, ela se despediu e foi para o trabalho.
Meia hora depois, eu fazia meu próprio almoço quando a campainha tocou. Toni começou a ladrar com muita insistência e eu ordenei que ele silenciasse. Atendi a porta com uma toalha no ombro e uma garrafa de óleo na mão. Assim que abri, olhei diretamente para a moça que ali estava e disse:
- Pois não? Posso te ajudar?
Ela não respondeu imediatamente. Pôs as mãos no rosto como tantas outras pessoas no meu pós-operatório e começou a chorar. Em meio aos soluços, só conseguiu balbuciar meu nome:
- Érico... você...
Antonia.
Meu coração saltou para a garganta. De medo. De curiosidade. De um sentimento que não sei exatamente qual era.

Dias que eu não viOnde histórias criam vida. Descubra agora