36. Feridas

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Há feridas que não se curam. Elas se estendem ao longo dos anos, como uma marca, uma dor contínua e pulsante que nos modifica, nos transforma. E ao invés de cicatrizar com o tempo ela apenas piora. Essas feridas sempre estão na alma, pode ser um amor que não deu certo, a falta de perdão ou uma relação de mãe e filho rompida...

Uma de minhas primeiras lembranças de infância são de quando eu tinha quatro anos. Brincando perto da cadeira de balanço da minha vó, esperando inocentemente minha mãe chegar do trabalho. Há essa altura meu pai biológico já tinha sumido no mundo, deixando todas as responsabilidades para minha mãe.

Eu lembro perfeitamente dela chegando para me buscar, depois de um dia exaustivo, e mesmo assim seu toque era carinhoso e sua voz doce. Em seu rosto o cansaço, mas também a satisfação de mais um dia realizado. Seu olhar era o mais intrigante: sombrio e triste que na época eu não tinha ideia do que significava, hoje em dia sei que era sua ferida na alma que mais tarde a tomaria por completo, transformando a moça jovem do olhar tristonho em uma mulher amargurada e orgulhosa.

Sua vida nunca foi fácil. Mas normalmente a vida de ninguém é.

O amor pode doer muito, mas a falta dele é mil vezes pior.

Foi isso que transformou minha mãe. A falta de amor. Não sentir nada a não ser raiva e rancor a lapidou em uma pessoa fria e orgulhosa. A religião foi um motivo na qual ela usou para justificar aquele seu jeito, seu novo eu.

No fundo acho que minha mãe nunca acreditou em um deus. Ela não acreditava no amor, e não confiava na humanidade. Quem dirá em um ser divino que era basicamente esses dois.

Eu estava drogado demais para perceber ou contar com detalhes como Anna e Evan me trouxeram de volta. O que me recordo são imagens, flashs de mim mesmo em desespero:

Anna e Evan tentavam me acalmar sem sucesso.

"Eu quero vê-la" repetia diversas vezes.

Eu quero vê-la. Eu quero vê-la. Eu quero vê-la...

De uma maneira bizarra, eu acreditava que ela se materializaria ali em minha frente e me diria que estava tudo bem. De uma forma mais surreal ainda, implorei pra Deus, ou qualquer divindade que estivesse ouvindo, que aquilo não fosse verdade, que fosse um engano. Uma brincadeira de mau gosto.

Eu neguei de todas as formas possíveis aquela notícia.

Nesse momento eu mal sabia se tinha tomado alguma coisa que estava fazendo efeito em meu organismo ou o desespero é que era o causador da minha instabilidade.

A ferida na alma doeu de uma forma que eu conseguia senti-la fisicamente em meu peito. Me faltava ar.

Me recordo entrando no avião, dessa vez estável, mas tão desconectado de tudo. Eu estava dopado. Me lembro descendo do avião, pegando um taxi. Só não me lembro de ter decido do carro. Eu dormi profundamente. A escuridão era reconfortante.

Quando a lucidez voltou estava eu, deitado em meu antigo quarto. Parecia um sonho, ou no caso, um pesadelo. Estava escuro, era noite. Muito confuso, me perguntei se tudo não passou de um sonho ruim. Instintivamente chamei minha mãe.

Ninguém apareceu.

Minha ferida voltou a doer mais uma vez, me fazendo lembrar da realidade em que me encontrava. Seria tudo verdade? As lágrimas insistiram em surgir em meus olhos, embaçando minha visão. Alguém apareceu no quarto, acendendo a luz. Foquei nessa pessoa presente, era Anna, minha melhor amiga.

A partir do momento que a vi, soube. Tudo era verdade. Nunca foi um sonho. Abri os braços, pedindo a ela seu abraço. A garota que costumava ser alegre e doidinha me abraçou forte, chorando junto comigo. Compartilhamos tantas coisas ao longo dos anos, felicidades, raivas e até alguns amores e sonhos. Pela primeira vez compartilhamos a dor.

O Filho Do Meu Patrão (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora