PRIMEIRAMENTE, EU PASSEI o resto da noite acordado. No outro dia pela manhã, consegui engolir uma xícara de café amargo para ver se acordava, se a ressaca desaparecia e se parava de parecer um zumbi.
As três tentativas em uma não deram certo, de todo modo.
Mas tomei coragem e mandei uma mensagem para Kananda.
— Oi, você está bem?
Provavelmente seria ignorado ou excomungado, mas tudo bem, eu merecia. Meu monstro interior — Ashur — a assustou, humilhou e a machucou. Ele tomou o controle de minhas ações. E não sabia ao certo o que estava sentindo naquele momento.
O que fiz não tem mais volta.
Bloqueei a tela do celular quando Gabriel entrou na cozinha com a cara amarrada, nem me dando bom dia, com seu costumeiro cigarro nos dedos. Estava sendo ignorado até pelo meu irmão.
Que. Legal.
— Ontem perdi a cabeça — sussurrei.
— Notei — respondeu, ainda procurando alguma coisa na geladeira. — Aliás, não foi difícil ver que você estava prestes a explodir a cabeça daquela menina.
Explodir a cabeça... Puxei o ar com força, sentindo minha testa reclamar de dor. Eu não queria, eu não estava lá de verdade. O tom de Gabriel parecia perfurar minha pele como uma picareta cega.
— Me... perdoe? — Arrependido e sem tato, tentei encará-lo, mas ele não me olhou.
Eu preciso me desculpar com Kananda também. Ela merece, depois de tudo o que fiz.
— Perdoar? — Gabriel fechou a porta da geladeira, coçou o peito desnudo repleto de tatuagens e sorriu, mais amargo que meu café. — Pelo quê? Diga aí, que até já perdi as contas.
Minha paciência tinha limites e Gabriel estava conseguindo esmagar todos. Respirei fundo e tentei agir com cautela. Sabia que tinha feito besteira na noite anterior, mas também já estava acostumado a agir como um merda perto das mulheres.
Mas por que diabos Kananda tinha de ser diferente? Ainda mais em relação ao meu irmão?
Tudo nela era mais intenso. Kananda parecia um chiclete em minha mente. Mesmo tendo feito tudo malditamente errado ontem, ela ainda permanecia em meus pensamentos. Mas... por qual motivo? Era isso que estava me deixando completamente maluco.
Por que eu nunca fiquei tão fissurado em uma mulher.
Resolvi abordar outro assunto, ainda mais duvidoso e relativamente perigoso.
— Eu... comentei sobre Ravena e...
Gabriel cortou minha frase com uma baforada de cigarro perto do meu rosto. Espantei a fumaça com os dedos.
— Quero que saiba somente uma coisa, Lorenzo. Eu gosto de Kananda.
Esperei pela piada que certamente viria depois dessa afirmação. Por que não era possível estar ouvindo o que saía da boca de Gabriel. Nada veio. Ele achava que estava falando sério em relação a "menina".
— Quê? — Pulei da cadeira e arregalei os olhos. — Você não a conhece, idiota. Como pode gostar dela, se mal trocaram duas palavras?
A expressão de Gabriel dizia que eles trocaram mais do que "palavras". A lembrança do beijo dos dois, naquela festa, fez meu estômago embrulhar.
— Pode ser — ele retomou, elevando os ombros —, mas a quero e isso não é só desejo. Espero sinceramente que você não entre no meu caminho, porque já teve sua chance e desperdiçou-a quando apontou uma arma para a cabeça dela.
Verdade.
Aquelas palavras me pegaram desprevenido e fui obrigado a sentar, pois Gabriel ainda não tinha acabado de estragar meu dia.
— E olhe aqui, vou retomar o seu trabalho e treiná-la no Perverse. Agradeceria muito se você não aparecesse por lá somente para atrapalhar meus planos — e como se já não fosse o suficiente, ele acrescentou. — Novamente.
Eu não consegui formular uma resposta. E ele nem estava esperando por uma, de qualquer jeito. Gabriel pegou uma camiseta da cadeira e sua mochila, saindo logo em seguida, sem mais nenhuma palavra.
Ele nunca tinha disputado uma mulher comigo. Ravena foi um acaso que estava ficando com Gabriel e começou a gostar de mim. Eu não tive culpa.
Portanto, por todos os santos, o que estava acontecendo com a gente? Toda essa confusão, apenas por ela?
Ainda aturdido por seu comportamento, desbloqueei a tela do celular e vi uma mensagem de Kananda.
— Você é ridículo! Como pode achar que eu estaria bem?! Vê se me esquece!
Uau. Por mais que bem lá no fundo esperasse que ela me respondesse, não imaginava que seria com palavras tão doces. Sorri, soltando o celular em cima da mesa.
Tudo bem. Se era uma competição de quem ganhava Kananda no quesito carnal, eu faria isso com meu irmão. Ele merecia uma lição. Kananda, de alguma forma, mexia comigo e se nada tivesse mudado desde a noite anterior — era recíproco.
Vantagem. 1x0, Lorenzo.
Já gostei, por que minha batalha não estava inteiramente perdida. Pelo menos, ela tinha respondido.
Engoli um pedaço de pizza fria de chocolate.
— Vamos ver quem ganhará a Wildcat — murmurei para o nada.
¥
Adentrei a universidade com o intuito de já conversar com Kananda, mas duas coisas me impediram. O tempo, pois já estava atrasado, e o desconhecimento, por não saber onde ela estudava.
Entrei na sala e me acomodei, vendo o professor ler os slides e escrever no quadro sobre as próteses dentárias. Tentei prestar atenção no assunto, pois era uma das matérias da prova da semana seguinte, mas estava difícil me concentrar e não pensar nela.
Droga de pensamentos. Todos iam e voltavam somente em uma direção — em Kananda.
Será que ficando com ela, esse tormento passaria? Talvez estivesse apenas curioso para saber o seu gosto ou que poderia fazer na cama. Apenas. Isso. E. Nada. Mais. Nada de sentimentalismo, nada de ficar babando em cima dela, como um cachorro protegendo seu osso.
Se é guerra que Gabriel quer, é guerra que terá.
Com absoluta certeza, era mesquinha a minha situação. Somente a ideia de lutar por uma garota já era, no mínimo, desesperador. Mas Gabriel apenas queria levá-la para cama e provar que poderia ser melhor que eu.
— E você quer o quê? — O pensamento de Ashur perfurou meu cérebro como uma faca.
Meu querido amigo sádico imaginário.
Parei de ir por aquele caminho e o deixei quieto em seu canto. Vi que Kananda estava online e mandei outra mensagem. Poderia ser forçado, mas valia tudo para tê-la antes de Gabriel — além de precisar mesmo me desculpar pelo que fiz.
Eu tinha que fazer isso.
Pelo bem da minha parca consciência.
— Ei, Wildcat, gostaria de me encontrar com você. É urgente. Onde nós trombamos.
Ela visualizou e ficou um minuto sem responder. Ah, ótimo. Será que deveria acrescentar um Por favor? Temi que me ignorasse, por que teria que agir como um palhaço, tentando chamar sua atenção. Já estava pulando aflito da carteira, quando notei-a digitando.
Mordi os lábios e sua resposta fez meu sorriso abrir.
— Tudo bem. Estou indo para lá.
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Fire | Vol. I
RomansaLivro 1. Série Dark Souls. Kananda Wright sempre foi atraída pelos bad boys, aqueles que fumavam e possuíam tatuagens espalhadas pelo corpo. Ou talvez, que só se vestissem de preto. Não importava, ela adorava observar os homens. Mesmo que a sua vida...