perceber

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A vida é uma montanha russa.

Dia de folga. Sempre a terceira quarta-feira do mês.

Emma acordou às onze, pois podia. Nesse dia ela podia.

Calçou as pantufas azuis. Lavou o rosto e escovou os dentes. Amarrou o cabelo. Preparou um café. Trouxe o notebook para a sala junto com sua manta mais macia. Apagou todas as luzes. Assistiria Titanic pela centésima vez e depois maratonaria sua série preferida, Anne With an "E". Dia de folga.

Se aconchegou no sofá e colocou o notebook sobre as pernas. O café repousava na mesinha de lado, esperando para ser bebido.

Emma poderia limpar seu quarto ou passar um pano úmido nos armários da cozinha. Poderia visitar os pais, Jimmy, Mason ou até mesmo dar uma passada no shopping, mas só o que queria fazer era ficar na paz de seu silêncio, procrastinar um pouco e sentir que não te nada para fazer naquela tarde serena de quarta-feira.

Tentou baixar Titanic mas estava sem memória no notebook. Culpa da medicina que tomara conta de todo o espaço durante seus anos de estudo.

Apagaria algumas coisas. Tinha uma série de arquivos já inúteis.

Encontrou uma pasta chamada "enviar para Sophia". Sorriu minimamente enquanto pensava se abria ou não. Abriu. Algumas fotos da viagem com Louis para Veneza. Fotos do apartamento que estavam decorando para o casamento. Algumas fotos juntos. Só algumas porque Louis não gostava de tirar fotos. E um vídeo. A imagem tremia mas dava pra ver seus rostos entretidos com a câmera.

Tentou lembrar que vídeo era aquele, mas não lembrava. E fazia tempo que não ouvia a voz dele. E queria lembrar do que tinha no vídeo. E ver o apartamento deles que acabou por ser vendido. E a interação bonita que ele tinha com Sophia. Quando se deu conta, estava criando pretextos para assistir. Então clicou duas vezes com o botão esquerdo do mouse. Play.

— Hey, Sophi! — Louis disse sorrindo e acenando.

Ele estava com um suéter cinza e tinha os cachos bagunçados. Seus olhos castanhos estavam arregalados. E a voz era alegre, pois estava alegre a falar com a melhor amiga que morava na África.

Emma sorriu, apoiando o rosto com as mãos. Ele estava bonito aquele dia. Era sempre bonito. Como um anjinho de cachos castanhos.

A Emma do passado apareceu ao fundo, passando apressada com um caixa de papelão nas mãos.

— Amor, vem dar um oi pra Sophia — Louis disse a seguindo com a câmera.

E então uma Emma mais nova e de cabelos mais curtos apareceu, interagindo com a câmera e com o rapaz ao seu lado. Ela usava um moletom verde, era de Louis, da universidade dele. E uma calça branca, dela mesmo. Parecia uma pera. Tinha menos olheiras e a pele era mais bronzeada. Saltitava mais e tinha um sorriso mais leve. Mas a maior diferença com certeza estava em seu olhar.

Olhar este, apaixonado. Não só por Louis, mas pela vida. Por todas as pequenas coisas que ela conseguia captar.

Pôde sentir com perfeição a nostalgia e a energia que aquela garota do vídeo passava. Tão gentil e tão plena. Tão espiritualizada e feliz. Era a versão de si mesma que mais gostava.

Fechou o vídeo. Olhou ao redor. A parede branca. Os quadros da parede. O interfone em silêncio. A cozinha ao lado, esperando limpeza. De repente, sua tarde sozinha pareceu má ideia.

Voltou ao computador. Foi até a pasta proibida. A pasta que nunca abria. Porque sabia que iria doer. Porque tinha medo de lembrar demais dele às vezes.

Mas ela teve coragem naquele momento, pois era a primeira vez em muito tempo que se sentia segura suficiente para vê-lo, apreciá-lo e senti-lo, com muito amor. Sem medo de amar demais, pois amor em excesso não existe.

Amor é essencial. E uma vida sem amor não é uma boa vida.

Vê-lo rindo a confortou, pois soube que no tempo em que esteve ali, ele foi feliz. E ela não se arrependia de nada. De todas as pequenas e grandes crises. Dos segredos, desejos, momentos.... Sabia que o ex noivo viveu feliz e, naquele instante, ela apenas se sentiu grata por ele ter aparecido um dia. Loteria foi encontrá-lo e ela seria eternamente sortuda.

Mas, ainda assim... Algo doía. Algo a incomodava. Tinha algo errado. Mas o quê?

Abriu o primeiro vídeo que reconheceu. Sabia o que era. Ela e Louis estavam tentando fazer aquelas posições malucas de ioga.

Era um vídeo hilário, que lhe fez rir muito um dia, mas não naquela tarde de reprises. O desconforto continuava a desconfortar.

Abriu um outro vídeo. Esse era antigo. Do ano em que se conheceram. Estavam no quarto dela, deitados no tapete. A câmera não era boa e a iluminação não ajudava.

Era uma menina ainda... Dezessete anos. Tão nova, tão pequena — por dentro e por fora.

Este é um daqueles vídeos que a gente grava quando não se tem o que fazer. Um vídeo à toa de um momento leve que acontece às vezes.

Ele nem se tocou quando ela começou a gravar. Continuou falando sobre a galáxia de Andrômeda enquanto ela trocava olhares entre ele e a câmera. Até que uma hora percebeu e começou a fazer graça. No final do vídeo, pensando que ela já tinha desligado a câmera, destruiu beijos no rosto dela enquanto sussurrava coisas que o microfone não foi capaz de identificar.

Mas ela lembrava o que era. E o que sentiu ao escutá-lo.

Era só uma menina, mas já sabia amar.

Sentia falta dela. Da menina que era. Onde aquela Emma tinha ido parar?

Continuou a ver vídeos. Achou um que ele tinha gravado sem que ela soubesse. Ele tocando a música preferida dela no violão enquanto ela e a mãe o escutavam, encantadas.

Emma sorria. E cantava junto na hora do refrão. Sem ensaios, sem acordos. Apenas sincronia. Eles eram uma música bonita.

Ele era a melodia e ela a letra.

A música acabou mas ela nunca parou de escrever. E agora era só palavras jogadas ao vento, sem sentido, sem propósito, sem amor.

Fechou o notebook com força, como um adolescente que vê pornografia escondido dos pais.

Seu olhar agora era frustrado, desesperado e triste, mas nenhuma lágrima escorreu de seus olhos.

Porque a vida é uma montanha russa. E às vezes tá tudo bem, mas às vezes tá tudo mal.

Sentia falta. E agora entendia.

Não era falta de Louis. Do apartamento. Dos sonhos que tinham. De ter um namorado. Não era nada disso.

Ela sentia falta de quem costumava ser. Da mulher que era ao lado dele.

Do sorriso mais leve e do olhar de quem não viveu grandes dores ainda. Das risadas e da forma como via o mundo. De seus gestos, costumes e hábitos que perdeu.

Deixou tudo isso morrer. E o tempo foi moldando a mulher solitária e sequelada que era agora. Se perdeu nas próprias histórias e agora já não sabia mais quem era de verdade.

As coisas que ela apreciava em si mesma não surgiram por Louis, mas ele com certeza as levou quando foi embora.

A vida quebrou Emma. Quebrou tanto que até hoje ela encontra um pedaço seu por aí. E esses pedaços... Sentia falta de tê-los juntinhos.

Falta da fé no amanhã. Falta de gostar de quem era por dentro. Falta de gostar da própria vida.

Não era mais sobre Louis e a saudade que ele deixou. Era sobre Emma e a pessoa que ela costumava ser. Gostava bem mais dela antes.

E agora, olhando para a parede, ela percebia: não gostava nada, de si mesma agora. Nem ontem. Nem meses antes.

Emma desistira de si mesma. E fazia tempo. Tanto tempo que ela já nem mais percebia que tinha algo errado com ela.

Mas isso acabara de mudar e agora ela tinha certeza: ainda estava quebrada, ainda não funcionava direito, ainda tinha uma série de rachaduras por dentro. Estava prestes a desmoronar, outra vez.

Uma História Sobre RecomeçosOnde histórias criam vida. Descubra agora