reacender

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Emma andava pela rua bonita daquele outro dia, quando caçou flores para sua mãe numa tentativa de deixar a vida mais leve.

Ela estava tentando deixar a vida mais leve outra vez.

Calçava coturnos escuros. Usava um jeans preto. Camisa social branca de manga curta. Estava bem diferente daquele dia. Por dentro e por fora.

Seus cachos estavam soltos e livres. E o vento deixava seu rosto exposto enquanto seus pelos do braço arrepiavam.

Existiam menos crianças na rua. Provavelmente porque não era um dia ensolarado e as mães ficavam preocupadas com a gripe. Mas os idosos sentados em bancos de praça continuavam ali, agora mais agasalhados.

Crianças têm pra onde ir, pois tudo que se conhece ainda é pouco. E mesmo com limites, um vídeo-game na sala de estar por vezes é suficiente.

Velhinhos, não. As opções já são escassas e o conhecido é sempre mais confortável. Confortável é bom. A velhice traz sensibilidade à pele e insensibilidade ao coração.

Emma olhou o restinho de sol indo embora, se escondendo atrás das casas. Sorriu minimamente.

A noite dava oi. As luzes dos postes acendiam. O calor era puramente climático e muito baixo. O ambiente era outro. Mais jovem. Lembrou de Mason. Ele gosta do céu quando ele fica escuro. Sorriu novamente, ao lembrar de sua pele branca sempre a fugir do sol quente de Los Angeles. Califórnia não parecia o melhor lugar pra ele.

Olhou a casa vermelha de cerca marrom. Luzes acesas, mas ninguém do lado de fora. Uma pena. Adoraria dar um oi.

O jardim da casa tinha agora um canteiro de rosas. E lembrar do enredo de O Pequeno Príncipe a fez sorrir outra vez.

Devia parecer uma boba sorrindo daquele jeito.

Precisava reler o livro. Relembrar as ilustrações, o significado, a doçura.

Lembrou, enquanto assistia o final da rua chegando, das coisas que passavam na cabeça dela naquele tempo. Da vez em que esteve ali, naquele mesmo lugar.

O dia anterior àquele. As lembranças de Louis. O choro. A ligação para sua mãe.

Era tão boa a sensação de que tinha se resolvido com essa parte de seu passado. Que amava Louis e sempre o amaria. E por isso perdoava sua ausência e sua desistência. Porque o amor que ele deixou foi suficiente para criar vínculos indestrutíveis.

Emma e Louis foram eternos naquele período de tempo. Ele foi o amor da vida dela enquanto coube a ele ser esse amor. E isso era lindo porque no fundo tudo é fase. Até o amor. Ele foi uma de suas fases mais bonitas. Uma. Uma das.

E só restou gratidão. Por tudo o que foram. Por tudo o que deixaram um ao outro. Por todo o crescimento e experiência que se proporcionaram. Por todo o futuro que não foi deles, mas que sempre será guardado num cantinho especial do peito.

Emma quase podia vê-lo, sentado na beira da cama de seu quarto na casa dos pais. Segurando a mão dela e dizendo: está tudo bem agora, Emma. E depois de beijar sua testa pela última vez, saindo do quarto com a certeza de que foi tudo que podia ser. E ela era feliz por ele.

E por ela.

Que sofreu e apanhou da solidão. Que pensou ter sentido todos os tons da saudade. E que acreditou fielmente que ela já tinha acabado. Que tinha morrido junto com ele.

E ali, naquela rua, tudo fez sentido. Emma acabava de sair da zona de desequilíbrio. Estava mesmo tudo bem.

Foi tudo necessário. Toda a dor. Toda a solidão e o vazio que preencheu todos os espaços de sua vida.

E como pode o vazio preencher alguma coisa?

Nunca foi vazio. Foi só um quarto fechado com as luzes queimadas. Não adiantava apertar o interruptor.

E foi assim por um tempo. Ela viveu no limbo. Sozinha. Fechada. Pela metade. Partida em pó.

Até que alguém consertou as luzes. E esse alguém foi ela. Foi sim. Porque ela sempre soube como consertar. Como juntar os fios certos com fita isolante. E desligar e ligar o disjuntor. Ela sempre soube porque viu nos livros da vida como é que se faz. Leitora sagaz. Emma sempre observou tudo. E sempre teve certeza de que existiam recomeços.

Mas tinha medo. Medo de errar o fio. Mesmo sabendo o processo de cor. Medo de levar choque. Mesmo usando proteção. E se não funcionasse, não é mesmo? Tinha medo.

E todo mundo dizia: Emma, você sabe como faz. Emma, é fácil. Emma, o medo dominou você. Emma, você escolheu a escuridão em que vive.

Talvez eles tivessem boas intenções, mas ninguém nunca disse as palavras certas.

Até ele chegar. E ver beleza em todo o breu da alma dela. Porque pra ele não tinha breu nenhum. Era só luz. Sempre foi luz pra ele.

Até ele chegar. E reacender o lado dela que sabia sentir.

Até ele chegar. E mostrar que não, ela não tinha sentido todos os tons de saudade existentes no mundo. Ela ainda tinha um mar de sensações para degustar. E ele proporcionaria boa parte delas.

Até ele chegar. E sussurrar um: você consegue, Emma. Eu acredito em você.

E é tão bom saber que existe alguém que acredita na gente. É tão bom que dá vontade de acreditar também.

Emma continuava lembrando daquele dia. De como Mason apareceu no meio da madrugada e lhe proporcionou uma das melhores noites da sua vida. Em como foi satisfatório encontrar os olhos azuis dele lhe esperando no corredor e depois fitando todo o seu corpo enquanto entrava dentro dela.

Lembrou de como decidiu deixar o tempo dizer o que ele seria, mas como sempre torceu pra ele ser alguma coisa.

E no final foi. Mason foi muito.

Final da rua. Uma avenida levemente movimentada surgiu. Parecia Los Angeles de novo.

Olhou para o garoto ao seu lado, segurando sua mão.

— Você estava certa. Parece outro mundo— ele disse, agora olhando a avenida.

Ela sorriu, satisfeita. 

— Você está bonita hoje — a olhou — Te vi sorrindo. Enquanto a noite caía.

Emma cruzou os braços. O encarou com um sorriso de canto. Sem mostrar os dentes.

— Louis sempre quis ver você assim, Em. E eu sei. Porque é o que eu quero também.

Ele voltou a olhar a avenida. Ela continuou a fitá-lo. Não conseguia parar. Ele continuava indecifrável.

E ela amava isso. Amava como ele lhe trazia coragem. E esperança. Amava como ele trazia vontade de recomeçar.

Uma História Sobre RecomeçosOnde histórias criam vida. Descubra agora