• Capítulo 27 •

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Charles é o nome de quem foi um grande amigo de minha pequena, antiga e morta família. Atencioso, gentil, solidário, mas sempre sério, Charles era do tipo que precisava ter sua amizade conquistada com pequenas ações que demonstrassem um bom caráter, porém, contudo, ela, sua amizade, tinha seus benefícios: ele era, ou ainda é, um bom homem (do tipo que se mentaliza com um maiúsculo B), e, mesmo pequena, eu podia compreender isso.

Todos nós o respeitavamos, e ele nos respeitava igualmente. Charles e meu pai foram grandes e bons amigos, e minha memória não pode me sabotar quanto a isso. Eles trabalhavam juntos, e a profissão podia exigir que agissem como um só

Quando criança ele costumava bater sobre minha cabeça sempre que nos viamos e dizer como eu havia crescido, minha mãe fazia toda a riqueza de biscoitos e bolos sempre que ele chegava, e toda a família se reunia na sala para conversar, Charles e meu pai cheios de história de aventuras que faziam minha mãe passar dos risos para uma cautela séria como raiva - e que me faziam transitar da monotonia para a esperança mais eufórica

Mas esses tempos transcorreram como uma boa brisa de verão deve ser, que é boa e faz com que se queira estar nela, há calor e há vida, mas acaba antes que se perceba, e deixa a sensação de que não se aproveitou o suficiente

Depois que todos morreram só nos vimos uma última vez, na fogueira crematória, quando chegou a vez de minha mãe. Charles me disse que sentia muito, muito, e que eu podia procurá-lo se precisasse de alguma coisa, qualquer coisa

Queria ficar comigo, mas a companheira não queria, assim como a filha, e o remorso lhe fez mais gentil

Na ocasião éramos todos frios, concentrados não só em enterrar nossas emoções como também esconder qualquer sentimento

— Escute, Jeneci - ele se abaixa sobre um joelho, me olhando nos olhos, o rosto jovem mas maduro, rígido - Você vai ter de ser muito forte agora. Senhora Rosa disse que a vigiará por mim

Os olhos estão um pouco vermelhos, diferente dos meus. Nossos rostos estão um pouco corados da fogueira onde minha mãe estava sendo queimada, mas, agora, tudo finalmente acabou

- Sua mãe está num lugar muito melhor - aperta meus ombros - e precisa saber que não foi culpa sua, não importa o que pense, você não teve a menor culpa; isso já estava premeditado

E eu vi que os adultos também poderiam ser muito ingênuos

Cheguei, até mesmo, a me perguntar se ele costumava dizer isso para si mesmo quando não pode salvar meu pai

Ele dormiu comigo nesta última noite, antes de voltar para a própria família. Pela manhã perguntou se eu não gostaria de me estabelecer em algum outro lugar, mas já tinha 12 anos, e queria continuar em minha casa independente do que eu e ela havíamos vistos nos últimos meses

Isso há muito, muito tempo, mas estou aqui, pesando todas as consequências de cobrar essa velha promessa. O Charles que eu conheci há mais de dez anos talvez não seja o mesmo Charles de agora

Ainda está vivo, felizmente. Passei a última semana no rastro de seu paradeiro, o segui até em casa com toda a cautela que um rastreador pode exigir. Sei onde mora, hábitos e horários, tudo que pude absorver sem correr risco. Sei que trabalha na casa do Alfa, o que é muito conveniente

Ele talvez seja a única pessoa que possa me ajudar

A única que pode fazer algo por mim

O único que talvez possa entender

Isso, ou aprender sozinha. Posso me sair muito bem só, mas tenho pressa, e ele tem experiência

E é por isso que estou em sua porta, depois de garantir que o veria sozinho, sem mulher ou filhos. Ele atende, abre sua porta, e vejo que não mudou muita coisa exeto por uma linha de expressão ou outra; ainda tem um rosto jovem

Os olhos se estreitam um pouco, dou o tempo que ele precisa. O que digo é muito mais pobre do que qualquer coisa que eu poderia querer dizer. Digo:

- Oi

Não há nem mesmo a formalidade educada de um "Olá"

- Jéneci?

Sinto uma pequena vibração. É meu passado que está me encarando na porta, como se o tempo fosse uma mentira e eu não fosse mais só a garota com os pais mortos, não fosse uma garota com uma bola de ferro nos tornozelos e uma promessa que sobrepõem toda e qualquer coisa

A simples correta pronuncia do meu nome após tantos anos é de um déjàvu que vibra, principalmente por sua voz ainda ter a mesma sonoridade

Charles me puxa para um abraço, me convida para entrar. "A última vez que nos vimos ainda era uma garotinha desse tamanho", apontando para sua cintura como mercador

Ele me oferece alguma coisa para comer, diz que posso sentar no sofá, faz as perguntas de praxe e, finalmente após tudo isso, ele fica sério, se inclinado em sua cadeira fronte a mim

- Mas o que a trás aqui? Veio de muito, muito longe. Está com problemas?

- Não, mas já vi tudo o que tinha de ver pelo sul. Estou em busca de algo novo

Ele sorri, um pequeno sorriso perdido em uma barba áspera e aparada. Uma resposta muito impulsiva, mas foi a intenção

- "Viu tudo o que tinha de ver", ainda não é nova demais para isso? - ele ri, um projeto de gargalhada - Não me engane, Jéneci, onde está sua permissão de saída?

Sabia que perguntaria isso. Não respondo, silenciosa.

- Fugiu. Você parece seu pai - patético. Tudo bem, nada contra meu pai, mas patético. Apesar de a comparação não me desagradar, patético. Fujo, e sou parecida com meu pai, fico e pareço minha mãe. Pareço e pareço e pareço. Então não sou apenas "Jéneci"? mas apenas uma consequência genética ? - Então está com problemas e veio em busca do velho Charles

- Preciso da sua ajuda, apenas um emprego, ou qualquer coisa. Apenas quero me estabelecer em um lugar que passe alguma ideia de futuro

Mentira, mas também verdade

Silêncio

Um longo silêncio

Seus cotovelos estão apoiados nos joelhos afastados, os dedos cruzados

- Você aprontou alguma pelo sul?

- Bem que eu queria, mas não há muito a fazer

Mais uma gargalhada

- Como é bom vê-la após tanto tempo - ele diz isso olhando para mim com ternura, e sei que está pensando na pobre garota órfã que abandonou naquele poço, sei que está pensando nos velhos tempo, no seu bom amigo assassinado - Tem onde morar?

Em algumas árvores. Algumas raízes mais confortáveis que outras, lavo meus dois pares de roupas em um riacho, mas achei um espelho

- Com alguns amigos em uma pensão

Charles balança a cabeça

- Vou lhe arranjar um bom lugar. Se importa de trabalhar com humanos? Sinto muito, mas num momento ainda é o que posso oferecer - garanto que não, deixo claro quanto qualquer coisa serve - Há uma vaga na Subdivisão, como camareira, posso arranja-la para você

Na grande casa do Alfa

- É ótimo

E estou perto, um começo nada mal, quase bom ou muito próximo disso. Preciso vê-lo só mais uma ou duas vezes e criar coragem para o verdadeiro pedido

Nós nos levantamos, ele me abraça mais uma vez, repete como está verdadeiramente feliz em me ver novamente

- Alice, minha mulher, saiu mais cedo com as meninas - diz - mas minha filha fez um bom bolo. Podemos come-lo e depois quero apresentar para você o Norte. O que acha?

- Acho perfeito

idOnde histórias criam vida. Descubra agora