Não tiro o vestido de empregada mesmo que ele seja curto o bastante pra fazer da profissão um malabarismo de "mantenha o pudor". Agora quero chamar ainda menos atenção, e calças não são apenas calças quando em uma mulher, mas um grande rótulo sobre a cabeça: "aquela da calça?"
Subo a rua com minha bolsa de roupas no ombro e encontro o banco. Não chego a sentar nele, pois Charles chega logo. Me cumprimenta e diz que tem um lugar melhor
Nós vamos até uma das ruas centrais, muito movimentada, o tipo de lugar no qual você pode ser ser jogada no chão se não tiver prática em desviar de esbarrões
Seguro firme na alça da minha bolsa e tento falar com Charles, saber o que estamos fazendo aqui, mas ele apenas diz que estamos perto. Perto quanto? Perto
Me movo em seu encalço até que chegamos em uma contrução caprichada de aspecto refinado. Adentramos, e pareço errada no lugar, uma figura colada no lugar errado
Olho para cima, para um lustre complexo de velas vermelhas. O chão parece tão limpo e polido que meus pés quase rangem nele
— Por que estamos aqui?
E desconfio dele, agora mais fortemente que o habitual. O que fazemos aqui? Uma armadilha?
Charles olha para mim, estamos na porta, há alguns metros de um balcão onde uma mulher de roupas tão curtas e apertadas está, que quase não podem ser chamadas roupa.
Tento não ter qualquer expressão, mas tenho uma intuição do que esse lugar significa
— Não fale ainda — e começa a se movimentar — e confie em mim
Dois paços seus são um meu, fora a vontade de sair a toda desse puteiro requintado. Um pouco de paciência, um pouco de estratégia, nada de fuga
Aperto a alça da mochila entre os dedos e sigo com a cabeça erguida, olhando para todos os lados, cada parede sem janela e estofado desocupado. Há alguns sofás espalhados pelo ambiente onde cada um possue sua própria mesinha na frente. Ainda cedo, ninguém onde eu possa ver
Quando alcançamos o balcão espalho meu braço sobre ele e olho a mulher nos olhos enquanto Charles pede um quarto. Ela tem os lábios muito vermelhos que nos deseja a melhor experiência após nos entregar uma das chaves em seus seios.
Vacilo com uma sombrancelha erguida, a única expressão em mim
Sigo Charles por um corredor que nos leva a uma escada que nos leva a outro corredor, esse cheio de portas numeradas. Ele não diz uma palavra se quer, uma explicação para a insanidade disso tudo. Confiar nele, certo?
Aguço os ouvidos, tento captar qualquer movimento atrás dessas portas sem conseguir nada, mesmo que a placa de algumas indiquem que estão ocupadas, o que me leva a mais uma conclusão: elas ignoram qualquer pedido de ajuda, isolando qualquer som
Chegamos ao quarto indicado na chave. Me mantenho atrás dele, observando seu corpo grande e esguio trabalhar em abrir a porta. Uma silhueta conhecida não só por mim, mas também por uma Companheira e mais duas filhas
Sou rápida, e quando já está inteiramente no quarto, o acerto no pescoço, pelas costas, pensando não só em quanto tudo isso é lamentável como também o trabalho que seu corpo vai me dar caso as coisas consigam piorar
Ele arqueja, mas o aperto e mobilizo com minhas garras, uma nos braços, outra na garganta. Me bato contra a porta para fecha-la, isolando qualquer pedido de socorro. Não importa quão grandes e bem treinados sejam, nunca podem fazer muitas coisa quando seus pescoços estão em risco
— Explique-se
E não sei exatamente o que sinto; nojo, repulsa, decepção? Além da dificuldade em que sua falta de apoio me coloca. Se quer tive oportunidade de lhe pedir o favor
Charles ri, meio arfando, meio engasgado, mas começando a ficar vermelho e tentando afrouxar meu aperto. Muito maior que eu, preciso usar de certa força para mantê-lo no chão, agachada.
— Não tão simpática e gentil quanto quando veio me procurar — ele tosse — não é mesmo, Sra. Payslan Harlan?
Vacilo, sentido um leve tremor que saculeja esse corpo por alguns segundos, apenas o que ele precisa para conseguir certa vantagem
— Ah, garota! — tosse uma reclamação — solte-me. Quero apenas ajudar
O retiro do aperto — não sem antes pegar a chave da porta. Me levanto de um salto enquanto ele faz o mesmo, massageando o pescoço
— Poderia ser seu pai — ele diz
— Isso não significa muita coisa, como deve saber — e meu sangue pulsante completa quase imediatamente: — por que me chamou assim?
Ele olha para mim com algo que pode ser dúvida ou arrependimento, embora de forma alguma decepção. Pela Lua! O que ele esperava? Me trazendo para esse lugar e dessa forma?
— Payslan Harlan. Não reconhece seu sobrenome, senhora? — suspiro — desculpe, reconheço que posso ter sido agressivo com a abordagem, mas esse é o único lugar que posso arranjar para que possamos falar bem. Os quarto são a prova de som
Desço minha saia, que subiu durante nosso desentendimento. Está tudo errado, tudo. Ele deveria descobrir, caso o contrário não seria tão bom, e não serviria, porém eu não deveria agredi-lo. Deveria convencê-lo. Charles continua
— Gustafsson, O Abandonado, isso lhe diz alguma coisa?
— É assim que o chamam agora? — pergunto, e não há qualquer gentileza no meu tom — Vai me entregar?
— Acha mesmo? — retruca — se fosse, estaria trancada em uma carruagem agora. Mais que grande estrago você deixou no Sul
— Não posso e não irei voltar — afirmo, confiante — você não pode entender o quanto é terrível
— Amo minha mulher e não sei como sobreviveria sem ela — e está sério, com aquele ar de quem impõe toda a experiência vivida para calar qualquer iniciante aprendendo a viver — e se algo foi tão mal ao ponto de fazer com que fugisse do seu, não há mais nada que precise saber. Mas a Subdivisão não é segura, estão atrás de você, e se continuar como está, vão acha-la
— E o que você me sugere?
Não foi a intenção agir como se estivesse desafiando, mas o tom saiu mesmo assim, pois sinto como se cada nervo estivesse pulsando pronto pra briga, e qualquer coisa mesmo fosse um bom motivo.
Eu acredito em Charles quando diz que não vai me deletar porque fica óbvio a cada vez que nos olhamos que ele ainda vê em mim a órfã que deixou para trás, sem mandar uma carta se quer, e sua culpa ainda é a única coisa que pode mantê-lo útil. Esse resquício de fraternidade quase sumindo no fundo do pote.
A moralidade masculina não só permanece viva como conto com seus princípios
— Que deixe de parecer com você própria. Tudo precisa ser feito ainda hoje, eles já estão aqui, me mandaram ficar atento e, se ainda não foi pega, é porque tem um bom amigo político — ele molda minha cabeça entre as mãos, pegando meu cabelo e erguendo, esticando minhas bochechas — vai precisar corta o cabelo, seus olhos também terão que mudar
— O que for preciso — jogo minha bolsa no chão e me movo até um grande espelho ao lado da cama — mas não posso sair da Subdivisão
Ele franzi a sombrancelha, posso ver pelo espelho. Sento no banco fronte o espelho e ele põe as mãos em meus ombros
— Não vou lhe arranjar problemas, Charles, fique tranquilo
Embora não possa prometer
— Assim espero — a maçaneta começa a chacoalhar, tremendo na porta. Encaro-o e ele me tranquiliza — Eu chamei
Ele abre a porta para uma humana séria com uma grande bolsa, que entra encarando cada centímetro com um rosto tão indiferente como se repuldia-se tudo ao redor. Ela tem um aroma diferente, nada daquele medo cauteloso que eles sempre exalam quando rodeados por nós
Eu sou a última coisa que ela encara, após terminar de xingar o vestido sujo de lama
— É ela? — ele confirma. Ela sorri, um sorriso cínico de quem já fez isso muitas vezes— Olá, Jéneci, sabe que é minha nova boneca?
Sorrio para ela. O que ainda está esperando?
VOCÊ ESTÁ LENDO
id
WerewolfNão se há muitas escolhas quando se é condenada a nascer mulher em uma alcatéia onde o machismo não é regra, mas é seguido como tal. Jeneci nunca quis um companheiro e ainda menos as consequências indesejaveis que ter um traria Tinha um plano de evi...