• Capítulo 30 •

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Não tiro o vestido de empregada mesmo que ele seja curto o bastante pra fazer da profissão um malabarismo de "mantenha o pudor". Agora quero chamar ainda menos  atenção, e calças  não são apenas calças quando em uma mulher, mas um grande rótulo sobre a cabeça: "aquela da calça?"

Subo a rua com minha bolsa de roupas no ombro e  encontro o banco. Não chego a sentar nele, pois Charles chega logo. Me cumprimenta e diz que tem um lugar melhor

Nós vamos até uma das ruas centrais, muito movimentada, o tipo de lugar no qual você pode ser ser jogada no chão se não tiver prática em desviar de esbarrões

Seguro firme na alça da minha bolsa e tento falar com Charles, saber o que estamos fazendo aqui, mas ele apenas diz que estamos perto. Perto quanto? Perto

Me movo em seu encalço até que chegamos em uma contrução caprichada de aspecto refinado. Adentramos, e pareço errada no lugar, uma figura colada no lugar errado

Olho para cima, para um lustre complexo de velas vermelhas. O chão parece tão limpo e polido que meus pés quase rangem nele

— Por que estamos aqui?

E desconfio dele, agora mais fortemente que o habitual. O que fazemos aqui? Uma armadilha?

Charles olha para mim, estamos na porta, há alguns metros de um balcão onde uma mulher de roupas tão curtas e apertadas está, que quase não podem ser chamadas roupa.

Tento não ter qualquer expressão, mas tenho uma intuição do que esse lugar significa

— Não fale ainda — e começa a se movimentar — e confie em mim

Dois paços seus são um meu, fora a vontade de sair a toda desse puteiro requintado. Um pouco de paciência, um pouco de estratégia, nada de fuga

Aperto a alça da mochila entre os dedos e sigo com a cabeça erguida, olhando para todos os lados, cada parede sem janela e estofado desocupado. Há alguns sofás espalhados pelo ambiente onde cada um possue sua própria mesinha na frente. Ainda cedo, ninguém onde eu possa ver

Quando alcançamos o balcão espalho meu braço sobre ele e olho a mulher nos olhos enquanto Charles pede um quarto. Ela tem os lábios muito vermelhos que nos deseja a melhor experiência após nos entregar uma das chaves em seus seios.

Vacilo com uma sombrancelha erguida, a única expressão em mim

Sigo Charles por um corredor que nos leva a uma escada que nos leva a outro corredor, esse cheio de portas numeradas. Ele não diz uma palavra se quer, uma explicação para a insanidade disso tudo. Confiar nele, certo?

Aguço os ouvidos, tento captar qualquer movimento atrás dessas portas sem conseguir nada, mesmo que a placa de algumas indiquem que estão ocupadas, o que me leva a mais uma conclusão: elas ignoram qualquer pedido de ajuda, isolando qualquer som

Chegamos ao quarto indicado na chave. Me mantenho atrás dele, observando seu corpo grande e esguio trabalhar em abrir a porta. Uma silhueta conhecida não só por mim, mas também por uma Companheira e mais duas filhas

Sou rápida, e quando já está inteiramente no quarto, o acerto no pescoço, pelas costas, pensando não só em quanto tudo isso é lamentável como também o trabalho que seu corpo vai me dar caso as coisas consigam piorar

Ele arqueja, mas o aperto e mobilizo com minhas garras, uma nos braços, outra na garganta. Me bato contra a porta para fecha-la, isolando qualquer pedido de socorro. Não importa quão grandes e bem treinados sejam, nunca podem fazer muitas coisa quando seus pescoços estão em risco

— Explique-se

E não sei exatamente o que sinto; nojo, repulsa, decepção? Além da dificuldade em que sua falta de apoio me coloca. Se quer tive oportunidade de lhe pedir o favor

Charles ri, meio arfando, meio engasgado, mas começando a ficar vermelho e tentando afrouxar meu aperto. Muito maior que eu, preciso usar de certa força para mantê-lo no chão, agachada.

— Não tão simpática e gentil quanto quando veio me procurar — ele tosse — não é mesmo, Sra. Payslan Harlan?

Vacilo, sentido um leve tremor que saculeja esse corpo por alguns segundos, apenas o que ele precisa para conseguir certa vantagem

— Ah, garota! — tosse uma reclamação — solte-me. Quero apenas ajudar

O retiro do aperto — não sem antes pegar a chave da porta. Me levanto de um salto enquanto ele faz o mesmo, massageando o pescoço

— Poderia ser seu pai — ele diz

— Isso não significa muita coisa, como deve saber — e meu sangue pulsante completa quase imediatamente: — por que me chamou assim?

Ele olha para mim com algo que pode ser dúvida ou arrependimento, embora de forma alguma decepção. Pela Lua! O que ele esperava? Me trazendo para esse lugar e dessa forma?

— Payslan Harlan. Não reconhece seu sobrenome, senhora? — suspiro — desculpe, reconheço que posso ter sido agressivo com a abordagem, mas esse é o único lugar que posso arranjar para que possamos falar bem. Os quarto são a prova de som

Desço minha saia, que subiu durante nosso desentendimento. Está tudo errado, tudo. Ele deveria descobrir, caso o contrário não seria tão bom, e não serviria,  porém eu não deveria agredi-lo. Deveria convencê-lo. Charles continua

— Gustafsson, O Abandonado, isso lhe diz alguma coisa?

— É assim que o chamam agora? — pergunto, e não há qualquer gentileza no meu tom — Vai me entregar?

— Acha mesmo? — retruca — se fosse, estaria trancada em uma carruagem agora. Mais que grande estrago você deixou no Sul

— Não posso e não irei voltar — afirmo, confiante — você não pode entender o quanto é terrível

— Amo minha mulher e não sei como sobreviveria sem ela — e está sério, com aquele ar de quem impõe toda a experiência vivida para calar qualquer iniciante aprendendo a viver — e se algo foi tão mal ao ponto de fazer com que fugisse do seu, não há mais nada que precise saber. Mas a Subdivisão não é segura, estão atrás de você, e se continuar como está, vão acha-la

— E o que você me sugere?

Não foi a intenção agir como se estivesse desafiando, mas o tom saiu mesmo assim, pois sinto como se cada nervo estivesse pulsando pronto pra briga, e qualquer coisa mesmo fosse um bom motivo.

Eu acredito em Charles quando diz que não vai me deletar porque fica óbvio a cada vez que nos olhamos que ele ainda vê em mim a órfã que deixou para trás, sem mandar uma carta se quer, e sua culpa ainda é a única coisa que pode mantê-lo útil. Esse resquício de fraternidade quase sumindo no fundo do pote.

A moralidade masculina não só permanece viva como  conto com seus princípios

— Que deixe de parecer com você própria. Tudo precisa ser feito ainda hoje, eles já estão aqui, me mandaram ficar atento e, se ainda não foi pega, é porque tem um bom amigo político — ele molda minha cabeça entre as mãos, pegando meu  cabelo e erguendo, esticando minhas bochechas — vai precisar corta o cabelo, seus olhos também terão que mudar

— O que for preciso — jogo minha bolsa no chão e me movo até um grande espelho ao lado da cama — mas não posso sair da Subdivisão

Ele franzi a sombrancelha, posso ver pelo espelho. Sento no banco fronte o espelho e ele põe as mãos em meus ombros

— Não vou lhe arranjar problemas, Charles, fique tranquilo

Embora não possa prometer

— Assim espero — a maçaneta começa a chacoalhar, tremendo na porta. Encaro-o e ele me tranquiliza —  Eu chamei

Ele abre a porta para uma humana séria com uma grande bolsa, que entra encarando cada centímetro com um rosto tão indiferente como se repuldia-se tudo ao redor. Ela tem um aroma diferente, nada daquele medo cauteloso que eles sempre exalam quando rodeados por nós

Eu sou a última coisa que ela encara, após terminar de xingar o vestido sujo de lama

— É ela? — ele confirma. Ela sorri, um sorriso cínico de quem já fez isso muitas vezes— Olá, Jéneci, sabe que é minha nova boneca?

Sorrio para ela. O que ainda está esperando?

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