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"Uma pessoa que já sofreu é perigosa, porque ela sabe que pode se recuperar."
– Filme Perdas e Danos.

•••

VALERIE

    Estava tudo tão escuro... Em geral, a luz que me preenchia seria suficiente para que eu conseguisse enxergar através das trevas, mas daquela vez era diferente. Eu tinha ciência de que tudo estava errado ali, naquele lugar estranho em que eu me encontrava, mas não conseguia entender o que era. Eu tinha estado em outro local segundos antes, não tinha? Algum lugar de maldade, de morte. Mas onde? 
    De repente a escuridão começou a se dissipar rapidamente, veloz demais para que meus olhos se adaptassem corretamente. Eu me vi diante de um enorme espelho de prata, meu reflexo distorcido pela minha visão embaçada, e aquela não parecia ser eu. O rosto tinha marcas de expressão deixadas por uma dor intensa, que eu não estava sentindo no momento, e meu corpo estava magro demais, como ficou naqueles cinquenta anos que estive aprisionada. Tentei invocar a luz para me envolver como um manto protetor, para me aquecer e levar para longe aquele frio cortante que eu sentia, mas não havia mais nada. O imenso poço de poder dado a mim pela Mãe e pelo Caldeirão estava completamente vazio. Tornei a fitar meu rosto cansado no espelho, tentando decifrar de onde vinha a dor... Então minhas asas sumiram. As grandes asas coreáceas que lembravam as de um dragão das antigas lendas, as asas que me marcavam como uma Illyriana legítima, que diziam ao mundo que eu era herdeira de Kalibia e filha das montanhas de Illyria. Elas foram arrancadas de mim por uma força invisível que as jogou ao chão, aos meus pés, e eu gritei...
    O cenário se transformou e as asas desapareceram. Eu agora estava em uma sala na mansão de meu primo, olhando para o espelho de prata... Mas agora não era um espelho comum. Ele também mudou, gradativamente, e se transformou no temido Uróboro. Olhei para ele esperando encontrar a imagem da besta que representava o que realmente havia em meu interior, mas ela não surgiu, era apenas eu e meu reflexo, ainda magro, ainda dolorido. E quando isso também começou a mudar, não foi para dar lugar à minha fera interior, mas sim para me tornar um tipo diferente de monstro. Meus olhos escureceram, e escureceram, e se tornaram pretos como a noite; o azul nas pontas de meus cabelos desapareceu e de repente cada fio era preto. Eu era a perfeita versão feminina de Ygnnor, sem tirar e nem pôr. Eu gritei e então o reflexo de meu corpo sumiu, dessa vez cedendo ao meu desespero. Minha besta enfim surgiu, com todas as garras e escamas e tudo o que eu já vira ao olhar para o Uróboro anteriormente. Como da outra vez, levei a mão até o peito e o abri em um corte profundo... Não houve luz saindo de mim como ocorreu antes. Era sangue. Sangue negro como o de um demônio. De algum lugar a voz de Bryaxis surgiu sussurrando "você teme a morte, Valerie?"
    Caí ao chão gritando como um animal ferido. Não, não podia ser verdade, não depois de tudo. O piso aos meus pés se abriu, então, e eu caí na fortaleza de meu pai. Meu pai... Ele não era meu pai. Só meu progenitor. E ele não estava ali, aqueles não eram os seus aposentos, eram... Ali estava Kalibia, seu corpo aos pedaços, as mãos arrancadas, os pés destruídos, envolta em sangue. Isso não era real. A fortaleza estava em ruínas, minha mãe... Minha mãe se levantou. Morta, mas se levantou. Não havia qualquer vida em seus olhos, eles estavam escuros, tão diferentes do violeta que tinham sido antigamente. 
    — A culpa é sua — ela sussurrou. 
    E eu caí novamente.

⚔️   ⚔️   ⚔️

    Não é real.
    Eu sabia que não era.
    Acorde, Valerie.
    Eu estava tentando.
    Você precisa acordar. Eu preciso que você acorde.
    Por quê? Por que eu deveria acordar?
    Não parecia haver motivos...
    EU PRECISO DE VOCÊ!
    A voz de Azriel penetrou a escuridão que me preenchia. É claro que nada daquilo era real, mas como sair de um lugar que parecia estar na minha própria mente? Daemati algum poderia me atingir, aquilo estava além dos poderes de um deles. 
    "Não consigo ver nada. Você não consegue iluminar isso aí?"
    Tornei a ouvir uma voz à distância, mas dessa vez não era a de Azriel e sim a de Cassian, em uma lembrança que insistentemente tentava invadir meus pensamentos. Um acampamento aos destroços, corpos mortos e brutalizados, uma menina jovem presa a um poste para morrer aos poucos. Por que lembrar disso tudo agora? O Acampamento Illyriano, meus irmãos de raça mortos, Céline acorrentada para sofrer uma morte lenta. O que isso tudo tinha a ver com a escuridão sem fim em que eu me encontrava? 
    Tudo.
    Tinha tudo a ver.
    Aquilo era uma ilusão, uma...
    Valerie!
    Eu queria acordar. Queria alcançar Azriel onde quer que ele estivesse, me desculpar por meus erros, mas eu estava ficando cansada, tão cansada. Minhas forças se esvaíam gradativamente. Era como se alguém sugasse minha energia. 
    Bruxas.
    Um fiapo de Percepção conseguiu despertar daquele torpor sombrio e me trouxe a resposta para tudo. Bruxas. Havia bruxas na Incursão. Não uma, não duas, porque somente essas não teriam o poder necessário para me atingir, mas muitas delas. Reunidas. Como da vez em que lançaram contra um acampamento um feitiço que não pudemos desvendar ou quebrar. Era... Inacreditável. 
    Ygnnor havia nascido a partir de um envolvimento entre Valec e Craswel, uma poderosa bruxa do norte conhecida por enfeitiçar humanos e comê-los vivos para aumentar seu poder. A fêmea se uniu ao Rei contra a própria vontade, do mesmo modo como minha mãe, e dela nasceu o Príncipe herdeiro de Hybern, um macho meio Grão-Feérico e meio bruxo. Craswel foi assassinada logo após dar à luz, algo pelo que seu filho sempre foi grato. Ygnnor odiava as bruxas quase tanto quanto odiava Prythian, Rhysand e Azriel. Em sua juventude tinha empreendido uma caçada a elas, matando tantas quantas cruzassem seu caminho. Em Hybern ele era também conhecido como O Matador de Bruxas, O Ceifeiro de Magia. E agora ele tinha acrescentado muitas delas à suas legiões, e isso tudo apenas para atingir Prythian e me ter de volta. Eu quase podia ouvi-lo dizendo "você não previu isso, não é, meu amor?"
    Agora chega!
    Senti quando uma mão feita de sombras, coberta por cicatrizes, tocou minha mente. Foi como se Azriel agarrasse aquele encantamento lançado contra mim e o puxasse para fora da minha cabeça, o arrastando pouco a pouco, dolorosamente. A escuridão foi ficando para trás conforme eu despertava para ver um céu tingido pelo crepúsculo. Meus amigos estavam ao meu redor, alarmados, e Azriel se encontrava caído ao meu lado, estatelado no chão como eu mesma estava. O encantamento provavelmente havia recocheteado nele e tirado suas energias também.
    — Desculpe — murmurei para ele.
    Sua mão — a verdadeira dessa vez — tocou a minha e entrelaçou os dedos  nos meus. 
    — Sempre — ele respondeu no mesmo tom.
    E então ambos desmaiamos. 

Corte de Amor e SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora