36

3.3K 383 72
                                    

"Quando o sol escurecer
Quando a terra estremecer
Quando o mundo parar de girar
Eu irei até você
E a terei."

•  •  •

    Pisei no solo de Velaris tendo a sensação de que meu estômago tinha ficado para trás. Não era exatamente enjôo, ou tontura, era mais um desconforto causado pela travessia, me causando certo mal estar. Não deixei que meus companheiros percebessem nada, me forçando a sorrir quando Cassian passou a mão nos pelos arrepiados de seus braços, mas a verdade era que eu me sentia extremamente estranha. Era evidente que a causa disso tinha sido a travessia, pois até então eu me encontrava perfeitamente bem, mas o motivo estava fora de minha compreensão. O uso da magia nunca tinha me causado reações adversas e desagradáveis, isso seria o mesmo que ser alérgica ao próprio ar: impossível. A magia fazia parte de mim. Levemente preocupada, deixei Cassian e Azriel para trás e saí voando para o fosso, receosa de atravessar novamente, sem dar muitas explicações.
    Quando cheguei, Bryaxis parecia estar me aguardando, parado como uma estátua sombria, sentado em minha cama. Ele era uma criatura realmente curiosa... Eu não sabia exatamente o que ele fazia quando eu não estava ali, mas desconfiava que sua rotina era algo que eu não ia querer conhecer. Eu não sabia se ele comia, dormia ou todas as outras coisas que pessoas normais faziam, e ele por certo não parecia ansioso para me dar essas informações. Mesmo que viéssemos criando uma relação extremamente amistosa, ele se recusava a permitir que eu visse tanto dele quanto ele via em mim. Só que tinha algo que eu com certeza compreendia perfeitamente na personalidade do Medo.
    Aquela expressão.
    — O que foi? — perguntei, desconfiada.
    "A senhora se sente bem?"
    Às vezes eu o odiava profundamente. Como ele sempre sabia? Nem a minha Percepção, ou as sombras de Azriel ou os dons Daemati de Feyre e de Rhysand diziam tanto quanto aqueles olhos opacos pareciam enxergar. Será que Bryaxis se assemelhava, no fim das contas, a um Suriel? Será que a própria terra sussurrava segredos para ele? Tantos mundos conhecidos, e ainda assim... Ali estava ele, sentado em minha cama, mãos entrelaçadas sobre o colo, me encarando com aquele inevitável ar de conhecimento.
    — Não — respondi.
    Fiz o impossível para ignorar o levantar de suas sobrancelhas — pela Mãe, ele não tinha sobrancelhas, mas era evidente que as estaria erguendo se as tivesse —, e sentei no lado oposto do cômodo, no chão. Cruzei um tornozelo por cima do outro, encostei a cabeça na parede às minhas costas e fechei os olhos. Puxei um fio de poder do fundo do poço de magia e o moldei com mãos invisíveis, formando uma pequena linha, que disparei como uma serpente por todo o meu corpo. Lentamente, a princípio, e depois mais rápido conforme a Percepção ia encontrando apenas normalidade em seu caminho. Órgãos, sistemas, tudo em ordem. Até que... 
    Ofeguei, meus olhos se abrindo e indo diretamente para Bryaxis. Ele sorriu.
    Não. Não. Não.
    A Percepção estava errada, pela primeira vez, tinha que estar. Oras, aquilo era tão, mas tão... Impossível? Inacreditável. Santo Caldeirão.
    "Seu parceiro está se aproximando. Se pretende fugir para assimiliar a atual situação, vá logo."
    Inferno. Eu o odiava por me conhecer tão bem.
    Levantei vôo imediatamente, desviando do caminho que Azriel tomaria para chegar ao fosso, e saí da Biblioteca, mais veloz do que a luz que me preenchia. E se fosse verdade, talvez não fizesse bem voar tão rápido e... O que eu estava pensando? Não era. Eu estava louca, é claro que estava. Não é?
    Mas não. Não estava.
    Pousei com excessiva agressividade em frente à moradia da Curandeira Madja. Bati na porta com tal ímpeto que essa simplesmente caiu das dobradiças. Envergonhada, encarei a pequena anciã do outro lado, parada estupefata, seu prato de sopa esquecido em suas mãos. Gaguejei uma desculpa, um pedido e novamente uma desculpa, e entrei sem esperar por um convite. Vendo a perturbação em meus olhos, Madja se desfez de seu almoço e, sem aguardar explicações, me levou para a ampla enfermaria nos fundos de sua residência. Pediu que eu deitasse na maca e começou a me examinar, da cabeça aos pés, suas mãos acesas com aquela magia curativa que era tão esplêndida. Prendi a respiração durante grande parte do processo. Quando acabou, ela simplesmente puxou uma cadeira e sentou ao lado da maca, em silêncio.
    Inferno.
    — Diga — pedi baixinho. 
    Ela sorriu um pouco.
    — A senhora sabe a resposta.
    — Não — neguei como uma completa idiota. 
    "Sabe, Val, quando eu soube que você estava sendo gerada dentro de mim, eu a odiei. Um ódio imenso cresceu dentro de mim no instante em que aquela Curandeira infernal olhou para Valec e deu a notícia que ele vinha esperando durante séculos: Finalmente haveria um herdeiro Illyriano em Hybern. A única coisa que ele fez foi assentir, em triunfo, e dizer que se algo acontecesse àquela criança antes de nascer, tanto eu quanto a Curandeira pagaríamos por isso. Eu odiei você, porque durante tanto tempo tentei evitar sua existência, mas então eu senti pela primeira vez... Não um movimento em meu ventre, você ainda era do tamanho de uma ervilha, mas senti sua presença, só isso, senti como se eu já não estivesse mais sozinha em um reino inimigo. Você se tornou meu maior tesouro no instante em que entendi que o maior amor do mundo crescia dentro de mim."
    — Parabéns, senhora — Madja murmurou. Estava incerta de como eu receberia aquela informação.
    Pavor me percorreu. Maldito fosse cada deus antigo que já tinha pisado naquela terra! O que eu faria?
    — Décadas — falei, quase rosnando — Séculos. Casais Feéricos levam séculos para terem filhos. Como diabos engravidei depois de transar uma vez com meu parceiro?
    Isso era inconcebível para mim, porque não parecia ser real. Quando transei com Helion na residência de Tarquin, tive o cuidado de preparar uma poção contraceptiva, mas quando foi com Az... Eu não tinha planejado o rumo que as coisas tomaram, não estava nos planos me enrolar nos lençóis com ele. E que droga de esperma superpoderoso era aquele? Quão improvável era que uma Feérica engravidasse tão rapidamente... Eu tinha conhecido fêmeas que tentavam havia séculos. 
    Eu não queria ser mãe agora, francamente! Como eu faria isso? Estávamos em guerra e aquele não era um mundo no qual eu gostaria de criar um filho. E Azriel? Misericórdia. Eu não podia simplesmente chegar e dizer: "E aí, Az, tudo certo? Então, sabe quando você me colocou de quatro na semana passada? Pois é. Engravidei." Eu estava perdida, completamente sem rumo. 
    — Mas você não é inteiramente Feérica, é? — Madja respondeu minha pergunta, mesmo que ela tivesse sido retórica — Tampouco o seu parceiro o é. Illyrianos são muito mais férteis do que Grão-Feéricos, senhora. 
    Eu sabia disso, droga, claro que sabia. Não à toa Illyria era equivalente à 70% de toda a população da Corte Noturna. Só que... Azriel não queria ser pai. Quer dizer, ele não tinha qualquer plano referente a isso, ou, para ser sincera, qualquer plano em relação a nós. Não tínhamos decidido como as coisas aconteceriam após o momento em que ambos aceitamos um ao outro como parceiro de forma definitiva, apenas agíamos como um casal da forma mais básica possível. Ele segurava minha mão quando sentávamos com o restante da Corte dos Sonhos para planejar ou simplesmente conversar, e vinha dormir ao meu lado no fosso todas as noites — mesmo que Bryaxis também estivesse por perto. Não tínhamos nos relacionado intimamente de novo, não ainda, não quando o contato físico era a última coisa necessária para que soubéssemos o quão grandiosas as coisas tinham se tornado entre nós dois. Como Rhysand e Feyre, Az e eu éramos, agora e sempre, duas partes de um todo. As antigas canções sobre o laço de parceria... Aqueles mitos antigos que clamavam sobre as maravilhas de pertencer a alguém integralmente. Éramos esses mitos agora, ele e eu. Só que nada tínhamos falado sobre o futuro, sobre o que faríamos depois da guerra. O que aconteceria quando Ygnnor enfim caísse? Az voltaria a ser o enigmático e taciturno Mestre Espião da Corte Noturna? Retomaria sua vida como ela era antes da guerra? 
     E eu? O que eu seria e faria ao fim daquele período? Que espaço eu ocuparia ali? Como prima de Rhysand e parceira de Azriel, eu sabia que sempre teria um lugar em Velaris, e como Illyriana eu tinha certeza que poderia arranjar para mim mesma um local de liderança junto à minha raça materna. Mas agora... E como mãe? Quem eu seria como mãe?
    — Talvez a senhora devesse cogitar contar a alguém sobre isso — a Curandeira aconselhou.
    E por isso ela queria dizer que o mínimo que eu tinha a fazer era contar a novidade ao pai da criança que agora crescia em meu ventre.

⚔️    ⚔️    ⚔️
   

    Três dias depois eu ainda não tinha tomado coragem de olhar nos olhos de Azriel e dizer as palavras que provavelmente mudariam tudo entre nós, aquela pequena frase parecia estar além das minhas capacidades. "Eu estou grávida." Céus. Mas eu estava. E isso era assustador e fantástico e me fazia sentir como se o mundo todo agora se encontrasse dentro de mim. Eu não saberia dizer o momento exato em que coloquei a mão sobre a barriga, ainda plana, e pensei: "Caramba, eu o amo." E eu amava mesmo, de uma forma que nem sabia ser possível. Menino ou menina, eu não fazia ideia, só o que sabia era que a existência de um pequeno coração pulsante ali dentro era a coisa mais mágica que eu já tinha presenciado. Durante meus setenta anos de vida eu havia vislumbrado um pouco de tudo, bondade, crueldade, poder primitivo como poucos poderiam conhecer, força, coisas espetaculares e coisas vis, porém nada jamais se comparou com aquela sensação. Ia além até mesmo do laço de parceira. Eu precisei apenas de algumas horas após a descoberta da gravidez para entender completamente o que minha mãe quis dizer naquele dia em que me falou sobre meu nascimento: O maior amor do mundo. Estava ciente de que toda a minha vida mudaria dali em diante, haveria incertezas, medos desconhecidos que eu nunca tinha pensado que viria a sentir, só que existia uma certeza que era absoluta: Nada seria mais satisfatório do que poder fazer por um pequeno ser o mesmo que Kalibia um dia fizera por mim. Eu não tinha receio de ser uma péssima mãe, porque o exemplo que eu havia tido era o melhor de todos, era o mais sublime e amoroso. E eu também sabia que Azriel seria um pai esplêndido.   
    Por volta da segunda semana após a descoberta, quando eu me sentia enfim pronta para olhar nos olhos de Az e contar a ele que nosso sexo selvagem tinha resultado em uma pequena criaturinha... O fim chegou. Começou com a pausa que todos decidimos dar, nos reunindo na Casa do Vento para beber e comer, decididos a ter ao menos uma hora de descanso jogando conversa fora. O plano era o seguinte: Não mencionar a guerra. Tudo correu bem durante certo tempo. Cassian sentou entre Morrigan e Feyre e as abraçou, esticando suas pernas e descaradamente apoiando os pés em meu colo. Rhys riu, comentando que o amigo parecia um Rei cercado e mimado por suas damas, ao que todas piscamos de modo sedutor e nos esticamos para beijá-lo no rosto, o fazendo gargalhar. Todo o instinto assassino causado pelo encaixar do laço de parceria já tinha arrefecido, então até mesmo Az sorriu. Elain e Nestha, a um canto, fingiam não notar a presença de Lucien, logo ali ao lado, que milagrosamente conversava com Amren. Qual assunto eles teriam, no entanto, era um mistério para mim. 
    Mais tarde iríamos visitar Jurian no hospital, uma vez que naquele dia ele sairia de lá. Após o ataque sofrido, ele tinha sido levado para Velaris e ali permaneceu durante muito tempo, se curando aos poucos. Seu olho arrancado fora substituído por um muito semelhante ao de Lucien, porém prateado. Tínhamos decidido encontrá-lo novamente antes de sair do hospital para tentar convencê-lo a permanecer na cidade até que as coisas se acalmassem, algo que ele provavelmente não aceitaria facilmente. O pouco que eu tinha vislumbrado em Jurian era o bastante para me dizer que ele estava sedento por vingança contra Ygnnor. 
    — Valerie.
    Quando Nestha me chamou, meus alertas se acenderam imediatamente. Não que houvesse algo estranho em sua voz, mas ela havia, afinal, me chamado pelo nome. Nestha nunca me chamava pelo nome. Olhei em seu rosto, mas ela não retribuiu meu olhar, seu foco estava em Elain. A acompanhei. Olhos menos atentos talvez não notassem a forma etérea como a menina mirava o nada, o jeito como suas pequenas mãos pendiam ao lado do corpo. 
    — O Príncipe da Morte se unirá à escuridão. O antro das trevas cairá, e engolirá a luz.
    Um arrepio intenso percorreu minha coluna quando o silêncio tomou conta da sala. Ninguém conseguia desgrudar os olhos do semblante de Elain, que, após falar aquelas palavras como se as lesse em um quadro que somente ela enxergava, engasgou e cobriu o rosto com as mãos. Confessou em frases entrecortadas que vinha tentando aperfeiçoar seus dons de vidência, lançando toda a magia que sentia existir dentro de si em direção a Hybern, mais especificamente a Exitium. Disse que vinha tentando ter visões que envolvessem Ygnnor. Disse que queria ser útil.
    Engoli em seco.
    — A luz que será engolida, suponho, seja a minha. Ou a de toda Prythian.
    Nenhum deles respondeu, mas Rhys disse:
    — Alguém tem alguma dúvida de que ele vai tentar tomar a Corte dos Pesadelos?

Corte de Amor e SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora