"Parte da jornada é o fim."
– Vingadores Ultimato.• • •
Eu senti sua presença antes de qualquer coisa. A serenidade e a paz, a turbulência e a imensidão, a inevitabilidade... Que Nestha havia acabado de conseguir evitar. O ar carregado daquele campo de batalha de repente ficou mais ameno, mas eu sabia que apenas eu tinha aquela sensação, enquanto todos, principalmente aqueles ali ao meu lado, sentiriam o oposto. Eu a conhecia, eles não. Eu gostava dela, eles a temiam. E naquele instante eu também. Para a minha completa descrença, a Morte não chegou como de costume, invisível e intocável, de modo que apenas eu seria capaz de vê-la. Não, ela se mostrou abertamente a todos os arregalados olhos daqueles que tinham sobrevivido à batalha, ela queria ser vista para que fosse entendida. Um crime havia sido cometido, uma afronta e uma quebra na natureza, e cabia a ela executar a sentença. Era seu o papel de júri e de juiz. E também o de executora.
— Não — sussurrei. Minhas forças... Eu me sentia à beira de um precipício sob o qual se encontrava um mar de chamas. Tudo parecia fora do lugar e errado. Tudo estava fora do lugar. Rhysand se agarrou à Feyre com ainda mais força quando o indescritível ser pairou sobre tudo e todos, sua sombra irregular nos cobrindo como um manto que para mim era conhecido e seguro, mas para eles era apavorante. A Morte. Ela não falou, e eu não achava que seria capaz de fazer isso estando na presença de seres vivos, mas a sua voz mental, espiritual, chegou a cada um de nós como se soprada diretamente em nossos ouvidos.
A infração cometida aqui não passará impune. Sangue foi recuperado, sangue será tomado.
Eu vi Feyre cair perante Koshei, morta, e a vi reviver pelo poder de Nestha, um poder herdado da própria Morte, aquela que agora dizia que um preço teria que ser pago pela vida restaurada pelas mãos daquela menina. Eu não podia aceitar isso...
Duas vidas foram restauradas, três serão tomadas.
Aquilo era inadimissível e...
Duas vidas foram restauradas.
Duas vidas.
Duas vidas.
Não foi para Feyre que olhei, nem para a mão que agora ela mantinha apoiada em seu ventre, mas sim para Rhys. Todo o seu desespero ao vê-la morrer... Porque ele não estava perdendo apenas sua perceira. Mas também seu filho.
Caí de joelhos.
Eu tinha estado tão presa em minhas preocupações com a guerra, e depois com minha própria gravidez, que não percebi que eu não era a única que agora gerava uma vida. E Nestha... Ela não tinha revivido apenas Feyre, mas também o bebê que esta esperava. Pela Mãe!
Comecei a chorar. Pela primeira vez, chorei diante de uma multidão de pessoas. A Morte, que eu conhecia tão bem, levaria não só Feyre e o bebê, como também Nestha. Eu não soube como encontrei forças para me pôr novamente de pé, eu só conseguia olhar para meu primo e pensar em tudo o que estava em jogo ali. Não apenas a vida de Rhys, Feyre e daquele filho que esperavam, mas toda a Corte dos Sonhos e, por extensão, a Corte Noturna. Se Feyre e a criança morressem, Rhysand morreria. E se Nestha morresse, Cass nunca mais seria ele mesmo. A vida de cinco deles...
— Leve a mim — sussurrei.
Quietude, mórbida e gélida.
E então a Morte disse:
Não.
Mas a minha decisão estava tomada. Pensar que junto comigo morreria meu filho me fazia sentir o pior dos sofrimentos, mas era um preço que eu pagaria para que aquela família não fosse completamente destruída. Eu, no lugar deles, era o mínimo que eu poderia fazer depois de tudo.
— Olho por olho, dente por dente. Duas vidas foram restauradas, apenas duas podem ser tomadas. Eu lhe imploro. Em nome de nossas antigas relações, deixe que elas vivam. Leve a mim.
A magnitude do que eu dizia recaiu sobre as pessoas ao meu redor com o peso de toda uma montanha. Morrigan ofegou em algum lugar ali perto. Rhys fechou os olhos, o rosto banhado por lágrimas, impotente. E Az... Azriel ouviu minhas palavras e caiu, seus joelhos e mãos se chocando com o chão sangrento. Seus olhos encontraram os meus, e depois desceram para minha mão, pousada sobre a barriga. Ele chorou quando sussurrei um pedido de desculpas.
Fiquei de joelhos de novo.
— Durante anos você foi incapaz de me levar, mas agora pode. Leve-me e a dívida estará paga.
Aquela sombra gigantesca se retraiu, vindo até mim.
— Por favor. Eu estou implorando.
Toda a sua sombra recaiu sobre meu corpo, abandonando o restante dos presentes. Quando ela tornou a falar, eu sabia que somente eu a ouvia.
Você está com medo, filha. Você nunca sentiu medo.
Ergui os olhos para seu rosto, quase indecifrável.
— Porque nunca antes tive tanto a perder.
Nada mais existia então, apenas nós duas, sentadas lado a lado no alto da torre em que fui mantida durante cinquenta anos, local em que ela veio e se tornou minha aliada.
Por que se sacrifica?
Não olhei ao redor, não queria rever aquele lugar, porém entendia porque a mente dela nos havia levado até ali. Por acaso não fora naquela torre de dor e lágrimas onde tudo havia começado? Onde meu peito foi partido pelo ferrão de uma besta da Incursão, e onde, segundos depois, ela surgiu e, incapaz de me levar, se foi novamente, frustrada por se ver diante de alguém que parecia estar além da vida e da morte.
— Porque eles me ensinaram o que é o amor — respondi simplesmente.
E por isso escolhe deixar a menina viver para criar o filho, quando você não poderá criar o seu?
— Foi você que uma vez disse que a vida não é justa. Eu sempre soube disso.
Então você escolhe deixá-los. Isso é amor?
Mesmo em meio a tudo aquilo, eu sorri um pouco.
O que era o amor?
Amor era quando Cassian me trazia sanduíches depois que eu permanecia muito tempo treinando as Illyrianas.
Amor era quando Morrigan estalava a língua em indignação com meu cabelo bagunçado, e logo depois vinha fazer um penteado que eu mesma jamais conseguiria reproduzir.
Amor era quando Azriel segurava minha mão enquanto andávamos pelo acampamento.
Amor era quando Amren reclamava de nossas brincadeiras infantis, mas me servia um pouco a mais de vinho na hora de encher as taças de todos.
Amor era quando Rhysand me alfinetava alegando ser mais poderoso que eu.
Amor era quando Feyre pintava meus olhos em sua parede, por achá-los possuidores de uma magia própria.
Amor era quando Elain me trazia uma amostra do novo bolo que havia criado.
Amor era quando Nestha aceitava minha lições e, antes de sair, me oferecia um quase mudo "obrigada".
Amor era quando Cerridwen arrastava Nuala para nossas lições sobre veneno, tentando fazer com que a irmã perdesse o medo que sentia de mim.
— Eu não vou deixá-los — neguei — Eles sempre me terão. Leve-me, e a dívida estará paga. Durante décadas você tentou me levar, minha vida é praticamente uma questão de honra para você.
Eu tive certeza que a Morte sorriu para mim.
Não, não é.
Fui novamente depositada em meu corpo, repentinamente demais, o que me deixou zonza. Olhei para o alto e não havia mais ninguém, a sombra da Morte desaparecera. Assustada, me apressei a procurar com os olhos por Feyre e Nestha, com medo de que tivessem sido levadas, mas elas estavam ali. Um vento fatasma soprou sobre todos nós e trouxe consigo um sussurro, uma sentença.
A dívida está perdoada.
Eu desabei no chão, aos prantos, soluçando. Ela tinha ido embora, tinha permitido que Nestha e Feyre vivessem. Que eu vivesse. Meu choro não diminuiu quando um corpo pesado se jogou ao meu lado, aqueles braços tão forte me rodeado e me apertando, como se ele tivesse medo que eu fosse desaparecer no ar caso não me segurasse com firmeza suficiente. Enterrei o rosto no peito de Azriel, bem perto daquele Sifão dourado que agora parecia fazer com que minha mãe participasse daquele momento de vitória.
Eu pensava que levaria uma pequena eternidade para ouvir o que ele disse a seguir, pensei que talvez isso não fosse real no momento, mas que um dia viria a ser; mas, talvez, me ver tão perto da morte — literalmente — fez com que uma última barreira se quebrasse em Azriel. Porque ele disse:
— Eu amo você. Eu amo você, Valerie.
Se afastando só um pouco, Az colocou a mão em minha barriga. Lágrimas correram por seu rosto.
— Amo vocês dois — sussurrou. Encantado.
E minha eternidade começou naquele exato instante.
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Corte de Amor e Sangue
FanfictionO Rei Hyberniano está morto. Elain e Nestha Archeron certificaram-se de que fosse assim. Mas o que as irmãs, bem como Feyre, Rhysand e os demais Prythianos, não sabem, é que Hybern tem herdeiros. E Ygnnor, o mais velho dos dois filhos do Rei Valec...