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"Ouça, minha criançaVenha ouvir de pertoDeixe-me contar uma históriaDe um povo amaldiçoadoUma terra destruídaDe uma escuridão que prevaleceu

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"Ouça, minha criança
Venha ouvir de perto
Deixe-me contar uma história
De um povo amaldiçoado
Uma terra destruída
De uma escuridão que prevaleceu."
Música de Victoria Carbol

•  •  •

    Hybern era um reino em ruínas, mesmo antes que seu Rei fosse morto. Havia fome e miséria, uma desigualdade ainda mais gritante do que em muitos territórios de Prythian, como a Corte Outonal. Seu povo era cruel e revoltado, porque desde que chegaram a esse mundo tinham sido ensinados a ser assim. Nove, esse era o número de pessoas que, em minha juventude, eu soube não gostarem daquele estilo de vida, todas mortas a essa altura. Bondade não era aceita ali e Kalibia tinha sido a maior prova disso. Nenhum hyberniano comum sabia, porém, que toda aquela miséria era relativa. Exitium era repleta das mais vastas riquezas, minas transbordantes de pedras preciosas que eram comercializadas com Montsere e traziam para a Incursão uma fortuna que poderia resolver o problema de Hybern em um único dia. Aliás, havia dinheiro suficiente para resolver a miséria de um reino duas vezes maior do que aquele espaço de terra esquecido pela Mãe. Mas por que Ygnnor ou Valec teriam se importado com isso? A fome e a raiva insentivavam o povo a querer vingança contra aqueles que supostamente tinham usurpado suas antigas riquezas, além de que... Por que os dois iriam querer dividir sua fortuna com a ralé? Eles eram Rei e Príncipe e não ligavam para o que acontecia com as pessoas fora dos muros da fortaleza, ou além das fronteiras de Exitium. Então o povo de Hybern sofria. E se tornava cada vez mais repugnante.
    Era nisso que eu pensava quando caminhei pelas ruas sem calçamento da principal área do reino. Aqueles que me viam saíam correndo, provavelmente recordando do quão cruel eu fora em minha juventude, os torturando e assassinando em nome das ordens de Valec. Em nome da segurança de minha mãe. Medo saltava deles em ondas, e não somente por minha presença repentina, mas também por saberem que, se eu estava ali, em breve o Príncipe também estaria. Eu continuei andando, vagarosamente indo em direção ao que uma vez tinha sido a praça principal, dando a Ygnnor tempo para que me sentisse. Todas as minhas proteções estavam abaixadas, não havia nada que o impedisse de sentir que eu estava ali, tão perto, a uma travessia de distância de suas mãos. 
    Eu não me arrependia da decisão que havia me levado até Hybern. Eu amava meu primo e sua família, amava Azriel com uma intensidade que ainda me sufocava de vez em quando, amava Prythian com todas as suas imperfeições. Tudo o que me tinha sido apresentado desde que conheci Cassian em Refúgio do Vento era então uma razão para que eu tivesse decidido me entregar. Ao contrário do que meus amigos pensavam, não tinha sido uma decisão tomada no calor das emoções, quando atos impensados eram comuns; não, eu tinha me isolado no alto de uma montanha Illyriana, onde um dia o Rito de Sangue de meu primo e amigos tinha ocorrido, e ponderei sobre o que estava acontecendo; depois voei até o acampamento onde Azriel tinha crescido, aquele que não passava de destroços, e também visitei o túmulo da mãe de Cassian. Ele me dissera uma vez que não sabia se ela realmente tinha sido enterrada ali, e eu quis poder dar esse acalento a ele. A lavadeira que não pôde criar seu pequeno, que fora brutalizada e assassinada. Ela estava ali, sim. Também passei um tempo no fosso com Bryaxis, em silêncio, encarando ele enquanto ele me encarava, em um joguinho esquisito de resistência. Eu desisti primeiro, infelizmente, principalmente porque Bryaxis sequer piscava. E foi só após dois dias que eu enfim tomei a decisão que mudaria tudo. Foi pensando em Helion, Tarquin, Kallias, Thesan, Tamlin, Eris. Foi pensando em Vassa, que tinha um reino para retomar, e em Hadassa, que pela primeira vez em uma vida inteira poderia viver longe da sombra opressora de Beron. Foi pensando em Jurian e em Nestha e em Céline, que tinham uma chance de recomeçar e mereciam que fosse em um mundo livre de Ygnnor. Eu não queria morrer. Queria poder viver ao lado de quem amava pelo restante da eternidade, mas esse período de tempo não seria possível se o Príncipe continuasse a viver.
    Então eu precisava morrer.
    Pensei na ironia disso tudo quando quinze Incursores atravessaram bem diante de mim, liderados por Ygnnor. Por tanto tempo a Morte tinha tentado me levar, eu causei mais irritação a ela do que qualquer ser vivo já havia causado, e por fim chegamos ao acordo de que ela não me levaria a não ser que fosse a hora, e que, mesmo então, me levaria como se fôssemos velhas amigas que se reencontravam. Saber que agora eu iria para os braços dela por livre e espontânea vontade, e por minhas próprias mãos, era quase cômico. Caso não fosse trágico, claro.
    E também pensei na afronta que era o fato de Ygnnor ter levado consigo apenas quinze soldados. Francamente. Eu nem poderia causar grande estrago antes de morrer e isso era completamente frustrante.
    Mas o que me causou arrepios não foi a frustração e sim o que vi nos olhos do Príncipe. Em setenta e três anos havia tido cobiça, paixão, desejo, cautela, orgulho e muitas outras coisas nas profundezas dos olhos dele ao olharem para mim, mas daquela vez havia... Vazio. Simplesmente vazio. Como se meu recente ato de traição tivesse extrapolado os limites de Ygnnor. Por um instante temi que meu plano fosse falhar, que ele tivesse desistido de mim e, assim, não fosse desacelerar com minha morte. Só que ele suspirou, como se estivesse aliviado por me rever, e eu deixei que a magia penetrasse em meu corpo, de fora para dentro, e envolvesse meu coração em fitas de luz que o partiriam quando eu ordenasse. Um movimento e eu estaria morta, e Ygnnor não seria rápido o bastante para me impedir, algo que ele tentaria. Porque seu amor era tão doentio, tão errado, que me ter presa em uma torre, sendo desfeita aos poucos, era preferível a ele do que me perder, fosse para outro macho ou para a morte. Um amor distorcido e ruim... Um amor que se tornou grande demais para um homem que não sabia amar.
    — Por que voltou? — ele sussurrou, rouco, como se tivesse chorado. Ou gritado por horas, enraivecido, o que era bem mais provável.
    — Tratou de matar seus capangas traidores? — devolvi.
    — Os castiguei o bastante para que aprendessem a lição.
    Sentei na beirada da fonte quebrada e seca às minhas costas.
    — Do mesmo modo como fez comigo durante cinquenta anos, irmão?
    Ele rosnou, mostrando os dentes. Sempre tinha odiado que eu o chamasse dessa forma.
    — Você me traiu, pequena, e isso me feriu. Mas eu a perdoei, e durante todo aquele tempo trabalhei para torná-la mais forte. E você se tornou.
    Não pude evitar rir, deixando os Incursores em alerta.
    — Mais forte? Não, irmão. Você somente me destruiu dia após dia. Mas, sabe, eu me reconstruí. Graças àqueles que você tanto odeia. Meu parceiro, por exemplo. Você o conheceu no outro dia. Azriel. Aquele que me mostrou o quanto é bom amar, como é grandioso o laço que liga duas pessoas destinadas a pertencerem uma à outra. 
    Eu deveria parar de falar. Já tinha se passado tempo suficiente e tudo o que eu precisava agora era morrer diante dos olhos de Ygnnor, o deixando de luto. Provocá-lo e deixá-lo com raiva a ponto de ser indiferente à minha morte... Eu não podia fazer aquilo. Mas era impossível evitar as palavras que queriam jorrar  de mim, as verdades que eu queria jogar contra ele para causar ferimentos tão profundos em sua alma quanto aqueles que ele tinha causado em minha carne. Era uma maldade que eu queria executar antes de partir para os braços da Mãe, porque ele merecia ser ferido de todas as maneiras imagináveis. 
    — Você é minha — Ygnnor decretou. Punhos fechados e poder oscilante, raivoso, desejoso por ser liberto sobre mim.
    Cruzei as pernas e entrelacei as mãos sobre os joelhos.
    — Não, não sou. Eu pertenço a Azriel, tanto quanto ele pertence a mim. E sabe o que mais, irmão? Eu amarei meu parceiro, hoje e sempre, mesmo quando o mundo que conhecemos não for nada além de um sussurro de terra esquecido em meio às estrelas. Eu amarei a ele, porque ele é bom, honesto, piedoso e gentil. Amarei Azriel porque ele me tirou da escuridão na qual você me lançou. E quanto a você? Fique com suas riquezas e armas, sua ilha maldita e seus Incursores desleais, sua coroa e seu trono. Você viveu e morrerá da mesma forma como seu pai, Ygnnor: Sozinho, sem jamais ter sido amado por ninguém. Você morrerá com a certeza de que eu morri amando outro macho. 
    Estava na hora. 
    Perdi uma respiração quando a luz envolveu meu coração com mais firmeza, prestes a esmagá-lo. Doeu muito mais do que eu teria imaginado.
    Foi então que Ygnnor disse as palavras que eu jamais teria cogitado ouvir dele.
    — Que seja, irmã — falou. Parecia tranquilo de uma forma que... Senti arrepios nervosos. Principalmente quando ele concluiu: — Mas se você não for minha, também não será dele.
    Parte de mim assimilou o que aquelas palavras significavam, a parte que queria sossego, um fim; mas o restante de minha mente não foi capaz de entender o que Ygnnor estava dizendo. Não até que ele atravessasse para longe, me deixando ali na fonte cercada por seus homens, e não até que Coriand erguesse um arco e disparasse uma flecha em minha direção. Não era isso o que eu queria? Morrer, para que a fúria de Ygnnor arrefecesse? Claro, morrer pelas mãos de Coriand era um fim pouco digno, mas eu o aceitaria, porque seria útil para meus amigos.
    Tornei a notar que aquela velha lenda de que, frente à morte, toda a sua vida passava diante de seus olhos era fajuta. Tantas vezes eu já tinha me deparado com ela e nenhuma vez vira um aglomerado de imagens vividas. Só o que vi, na verdade, foi o rosto de minha família. O sorriso discreto de Azriel e a risada extravagante de Cassian, a mão de Feyre pintando meus olhos na parede de seu atelier, os braços de Morrigan cheios de roupas para mim, o braço de Rhys em meus ombros me consolando, o sarcasmo nos olhos prateados de Amren. A minha família que, eu descobri, não estava disposta a permitir que eu acolhesse aquele destino. Quando a flecha, certeira e afiada, chegou próxima a mim, um brilhante escudo cobalto se materializou no ar à minha frente e a bloqueou. Então Azriel surgiu das sombras diante de mim, feroz como nunca antes, e se jogou contra os Incursores que permaneciam ali, logo sendo seguido por Cassian, Morrigan, Feyre, Rhysand e Lucien. Em um instante eu estava prestes a ser flechada, e aceitava isso, e no instante seguinte minha família estava ali me impedindo de fazer um sacrifício pelo bem deles. E o sacrifício que você está me obrigando a fazer, Valerie? Azriel... Quando me coloquei de pé, decidindo que meus planos eram agora irrecuperáveis, fitei meu parceiro com um misto de raiva e afeto, e foi quando vi. Azriel, de armas em punho, se virou, bloqueando o ataque de uma Incursora, e tal movimento o colocou de frente para mim. Em seu peito, logo abaixo do Sifão cobalto, havia outro: Um Sifão dourado que nos ligava muito mais do que o laço que percorria nossos corações. Porque ao colocá-lo, ao vestir a pedra que um dia tinha quantificado o poder de minha mãe, Azriel estava declarando ao mundo, a mim, que me aceitava como sua, que me queria. Que pertencíamos um ao outro.
    Como se o tempo tivesse parado, subi o olhar e fitei seus olhos arrebatadores, e ele também me olhava. Foi como se o mundo tivesse paralisado, porque Azriel sabia que eu havia entendido, sabia que eu estava de acordo com sua decisão. A coisa toda não durou mais do que dez segundos, quinze Incursores não tinham qualquer chance contra todos nós, mas eu nem esperei que todos os inimigos tivessem caído antes de me lançar para Azriel. Passei os braços por seu pescoço e ele agarrou minha cintura, me ergueu contra si e pressionou seu lábios contra os meus... O céu pareceu descer sobre mim com aquele primeiro contato. Foi diferente de tudo o que eu já tinha experimentado, era como se eu nunca tivesse beijado, porque jamais pensei que poderia ser assim. Todo o passado e o futuro desapareceram de mim, não restou nada que não fosse a boca dele na minha, aqueles braços maravilhosos me segurando e me erguendo. Nos beijamos como se aquele fosse o primeiro e o último beijo... Mas eu sabia que era apenas o primeiro, porque eu faria com que muitos acontecessem depois. 
    A única coisa que falei antes de atravessar a nós dois para Velaris foi "fiquem longe da Casa do Vento pelas próximas horas."

Corte de Amor e SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora