Capítulo XV

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 Acordo assim que, involuntariamente, afasto as cobertas do meu corpo. De alguma forma, pressinto que a cafeteria precisa de uma faxina minuciosa, antes que a sujeira o consuma por inteiro e comece a assemelhar-se com um aterro sanitário. Também acredito que muitas contas não foram pagas e que a planilha que eu fiz constando todos os gastos e lucros previstos, já esteja inadequada.

Levanto-me, sentindo as minhas glândulas sudoríparas conduzirem o líquido por seus estreitos ductos, para controlar a minha temperatura corporal e, assim, não degradar nenhuma proteína, evitando a minha morte. Está quente, realmente, mas já estive em dias em que o calor estava mais intenso e, se eu tivesse que palpitar algum número, sugeriria que os termômetros estejam marcando 32ºC.

Ligo o rádio e abro as cortinas, mas nenhum raio de sol entra no quarto, pois o dia sequer amanheceu. A música que toca na rádio é agradável e me faz até sentir vontade de dançar, mas não posso vacilar um passo sequer, pois há inúmeras peças de roupa espalhadas pela Zoé e não gosto que elas me toquem sem que eu esteja devidamente preparada com luvas e álcool. De todas nós, a Zoé é a que menos se importa com a harmonia do nosso ser. Para ser sincera, ela não se importa com ninguém a não ser com ela mesma e age de forma inconsequente em todos os aspectos possíveis.

Começo a juntar todas as peças, as dobro e as coloco na sua parte do guarda-roupa. A divisão foi eu mesma que fiz. A primeira parte é para as roupas da Despina, onde a maioria das peças estão dispostas a uma altura que não exija muito o seu esforço. A segunda é a da Maia, a qual estão dispostos todos os seus vestidos, devidamente separados por cor e modelo, e de fácil alcance. A terceira parte é a minha, e eu guardo a chave em um lugar que somente eu sei, para que a Zoé não mexa nas minhas coisas. A quarta e última parte, cujas portas estão abertas devido ao excesso de bagunça, é a da Zoé.

Mesmo sendo tão irresponsável, sei que a Zoé não permite que os seus amigos, Nanda e Diego, mexam nas outras divisões do guarda-roupa. Às vezes, fico me perguntando o porquê deles ainda continuarem sendo seus amigos, já que ela é extremamente egocêntrica. São coisas que apenas os jovens saberiam responder e eu nem me esforço, pois os meus neurônios ficam fatigados apenas de imaginar a possibilidade de tentar desvendar esse mistério.

Após deixar tudo organizado, sigo para o banheiro e faço a reposição dos medicamentos da Despina. Na verdade, são apenas placebos, ou seja, medicamentos que não possuem propriedades como os outros fármacos, mas que atuam, basicamente, no psicológico dos pacientes, que acham que estão sendo tratados de verdade. Nós não precisamos nos preocupar muito com a nossa saúde, já que ela depende exclusivamente da Zoé – o que acaba por me contradizer, já que, de longe, não é um bom sinal.

Hoje os termômetros marcam trinta e dois graus em Hauste. É, o dia vai ser quente, minha gente. Ouço o radialista anunciar. Sou muito boa com números.

Cada uma de nós tem as suas próprias virtudes e os seus próprios defeitos, apesar da Zoé ser, ligeiramente, a única a expressar uma mistura de características das outras três. Cada uma de nós vive a própria vida, fazendo as próprias escolhas e tendo os próprios pensamentos, mesmo que sejamos a mesma pessoa. Mas, quando queremos, podemos armazenar informações como pensamentos ou lembranças para que as outras saibam, ou para que duas ou uma de nós saiba, conforme acharmos conveniente. Enquanto as outras três de nós não estão vivendo como as pessoas normais, é como se estivessem em um profundo sono interrompível. Sei que as coisas não deveriam ser assim e também sei que, principalmente para a Zoé, essa situação é imensamente dolorosa, mas ainda não achei uma maneira de reverter a situação. Somos quatro fases de nossa vida vivendo o mesmo presente.

Sigo para a cafeteria e faço uma limpeza geral, ajeitando as mesas e cadeiras, e retirando todos os chicletes grudados na parte inferior. Os copos e talheres estão completamente desorganizados, e a gordura impregnada nas paredes da cozinha parecem prestes a ganhar vida. A bancada quase não é visível devido ao excesso de poeira, e eu posso jurar que temos uma vidraça por trás de toda aquela crosta nojenta.

Não sei como as pessoas conseguem enxergar o interior da cafeteria, no meio disso tudo. Tudo bem, às vezes sou um pouco exagerada. Não está tão ruim assim. Dá para ver que alguém fez uma limpeza básica por aqui nesses dias.

— Ai, graças a Deus! – Ouço a agradável voz da Dona Regina, como se ela estivesse diante de um verdadeiro anjo. — Que bom que é você hoje, Teresa! O café está impecável! Nem me lembrava que o chão tinha esse tom de marrom.

Aproximo-me dela, sorrindo, e a abraço.

— Estava com saudades! – Digo.

— Também estava. Não sabe a confusão que esse lugar se encontrava.

— Ah, mas eu consigo imaginar.

Ela faz silêncio.

— Você ainda não parou com essa mania, Teresa? Sabia que esse abraço estava caloroso e demorado demais.

— Do que a senhora está falando?

— Você ajeitando a minha camisola! – Ela resmunga.

— É, bem, está um pouco amassada, só isso – sorrio, fingindo não dar muita importância.

Na verdade, estou me controlando para não arrancar a peça de roupa do seu corpo e levar para passá-la.

— Tudo bem, eu vou me trocar – ela comenta, virando-se de costas. — Nem mesmo posso usar as roupas que quero, do jeito que quero.

— Obrigada.

****

As vendas na cafeteria, como eu já havia previsto, reduziram significativamente nos últimos meses. Entretanto, desde que instrui a Dona Regina a comprar frutas em promoção e ensinei uma técnica de congelamento, agora temos a opção de venda de vinte e uma variedade de sucos naturais, além de dezessete novas opções de lanches, cujas receitas foram inteiramente criadas pela Despina.

— Brenda, querida, não pude deixar de notar que está usando maquiagem. Em excesso.

— Oh, me desculpe, Teresa – ela abaixa a cabeça, envergonhada. — Só vou terminar de servir as mesas e vou no banheiro tirar.

Encaro-a por alguns instantes, sentindo o meu coração se comprimindo.

— Como foi o dia hoje na escola?

— Normal, como sempre – ela responde, olhando para os clientes.

— Não precisa retirar a maquiagem, Brenda. Mas preciso conversar com você.

Ela assente com a cabeça, voltando aos seus afazeres.

Ajudo a servir algumas mesas, enquanto a Dona Regina prepara os lanches e sucos. Não me espanto muito ao perceber que o meu plano está dando certo, mas também não disfarço o meu sorriso de contentamento. Nenhum outro lugar da cidade oferece bebidas refrescantes e opções leves de lanches como aqui. Muito provavelmente, o nosso faturamento já é superior ao dos outros dias do ano, tudo isso graças à minha inovação.

— Ah, não, Sr. Weber! – Advirto o homem, assim que o vejo amarrando um de seus cachorros pulguentos do lado de fora, mas baixo o suficiente para que apenas ele escute. — Pode desamarrando essa coleira aí. Primeiramente, não permitimos animais na porta do nosso estabelecimento. Em segundo lugar, você não tem consciência? Está muito quente! Já imaginou como as patas do cachorro ficam sensíveis? Sem contar que o senhor não o leva para tosar há... uns dois anos? E o que o senhor faz com essa gravata borboleta? Santo Deus! É completamente desarmoniosa com o restante de sua roupa! E dê um jeito de passar essas calças antes de vesti-las.

— Se eu soubesse que você estaria aqui, nem teria me atrevido a sair de casa – ele gira o bigode, enraivecido, enquanto desamarra a coleira. — Chata demais essa mulher – resmunga.

— Eu ouvi isso! – Protesto.

— Foi mesmo para você ouvir.

Que senhor abusado!

As Quatro Estações de ZoéOnde histórias criam vida. Descubra agora