Capítulo VIII

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Quando o dia amanheceu, o tempo não estava tão frio, mas ainda ventava. A luz do sol invadia os buraquinhos da janela e projetava pequenos círculos no guarda-roupa. Tateei o meu corpo e não poderia estar mais contente em saber que era a Zoé, porque eu tinha um milhão de coisas para fazer e estava muito animada. Por isso, levantei cedo para fazer as unhas dos pés. Ouvia uma música alta nos headphones e dançava mexendo a cabeça, enquanto mascava um chiclete de hortelã que estava na minha bolsa há meses. A minha caixa de esmalte estava em cima da mesa e alguns frascos estavam espalhados, porque eu sempre ficava indecisa em relação a qual cor escolher, mesmo sabendo que ficaria bonita com qualquer uma delas. 

— É inacreditável – ouço a voz da Dona Regina ao meu lado, imediatamente após puxar os meus fones. — Você está fazendo as unhas agora, Zoé, na frente de todos os clientes?

— Posso me virar para o outro lado, se quiser – sugiro, fechando o esmalte e assoprando as unhas recém-pintadas de vermelho para ajudar a secar. 

A Dona Regina bufa em cima de mim. 

— Zoé, você não é mais criança! Tantos clientes na cafeteria e você deixando tudo para a Brenda dar conta! Às vezes você é tão egoísta! Quando é que vai colocar juízo nessa sua cabeça?

— Nos dias quentes – brinco, me referindo à Teresa, mas a Dona Regina permanece séria. — Desculpa. 

— Pode voltar para o quarto – ela fala, cansada. — Deixe o avental aí em cima da mesa. Não precisa voltar hoje. Não quero me estressar, nem ficar o dia todo chamando a sua atenção. Estou ficando esgotada!

Cabisbaixa, junto as coisas na caixa, levanto-me e faço exatamente o que ela pediu. Ela está chateada comigo, mas não faço as coisas de propósito. Quando percebo, simplesmente já estou fazendo. É inconsciente.

Deitada na cama, encosto a cabeça no travesseiro e começo a pensar no quanto eu deveria ajudar mais a Dona Regina na cafeteria, mas eu simplesmente não consigo. Fico tão pouco por aqui, que acho um desperdício de tempo gastar as minhas poucas horas servindo café e limpando o chão. Eu deveria estar vivendo a minha vida, sendo mais independente, namorando e indo em festas e... Espere, a festa! O que será que houve depois que eu fui embora? 

Penso nas fotos que a Nanda e o Diego devem ter tirado, felizes e sorridentes. Há alguns meses, eu estaria entre eles, deixando-as ainda mais bonitas, mas eles decidiram fazer aquilo sem mim. Espero que, em todas elas, a Nanda tenha saído de olhos fechados. E o Diego com a boca aberta. Se soubessem o que se passa na minha vida, talvez não fossem tão egoístas! Se soubessem o quanto a minha vida se restringe a passar alguns dias por aqui, valorizariam mais a minha amizade. Mas, não, eles preferem começar um relacionamento e esconder isso de mim. Céus! Ainda não consigo  acreditar que estejam juntos. Eles são horríveis juntos! E são meus melhores amigos. Ou eram, não sei mais dizer.

Conheci a Nanda no nosso primeiro dia de aula. Ela estava sentada na escada do colégio, durante o recreio, com algo muito estranho na boca. Sentei-me ao lado dela, curiosa, e perguntei o que era. Então ela respondeu que era uma bombinha para asma. Eu pensei que fosse algum tipo de brinquedo ultramoderno e muito divertido, porque ninguém simplesmente deixa de brincar no recreio pra ficar sentada na escada. Assim que ela me emprestou, ou talvez eu tenha tomado de sua mão, não lembro ao certo dos detalhes insignificantes, não demorei um minuto para gastar toda a medicação no ar. Resultado: a Nanda teve uma crise asmática e não pôde mais usar a bombinha. Foi assim que, no nosso primeiro dia de aula, ela conheceu a enfermaria e eu a sala do diretor. Até hoje não entendo como tudo aconteceu depois,  mas, desde então, nos tornamos melhores amigas.

Mas agora não sei se ainda a considero uma amiga.

Frustrada, levanto-me da cama e visto um casaco. Preciso ir lá fora respirar e recolocar os meus pensamentos em ordem, antes que eu pire de vez igual a Despina.

Saio pelos fundos sem dizer uma única palavra e caminho em direção à rua de pedra. A calçada é larga, mas as bicicletas rentes ao muro impedem-me de andar tranquilamente. Às vezes, tudo o que desejo é ser como uma ave, mas sempre fico indecisa entre escolher a magnificência de um pavão ou a fortaleza de uma garça. Talvez eu seja um cisne – sem a parte do patinho feio, claro.

Com os pensamentos aglomerados nas nuvens, não consigo perceber para onde estou indo. Só quero um lugar com tranquilidade e onde eu possa continuar  fantasiando uma minha vida perfeita e emocionante, que nunca irá acontecer.

— Zoé? – Ouço uma voz conhecida antes de me sentar no banco que fica de frente para o lago, próximo à igreja.

— Ah, oi, padre – seguro as suas mãos enrugadas e faço um gesto de reverência. — Tudo bem?

— Nas graças do Senhor – ele sorri. — Tem um minuto?

Afirmo com a cabeça e ele se senta ao meu lado, no banco, olhando para o horizonte.

— Você parece um pouco abatida – ele tira as folhas da batina, as quais despencam ligeiras da copa do enorme jacarandá que há ao nosso lado.

Esfrego as minhas mãos ansiosamente, sentindo um nó na garganta. Nunca consegui mentir para o Padre Constantino. Ele é um senhor sorridente e gentil e sempre me ajudou quando mais precisei. É baixo como um pré-adolescente e anda um pouco encurvado. Há algumas pintas grossas sobre a sua pele negra, espalhadas em alguns pontos do seu rosto, e sempre está usando batina.

— Não sei como viver sem toda essa fantasia que costumo criar, e isso acaba ofendendo as pessoas – falo, olhando para os meus pés inquietos. — Sei que já conversamos inúmeras vezes sobre isso, mas não sei o que fazer. Tudo o que eu queria era ter uma vida normal. Emocionante, mas normal.

Ouço o seu suspiro e ele sorri.

— Não há como viver uma vida normal e, ao mesmo tempo, emocionante, Zoé. Não existe uma vida normal, para ser sincero. Todos vivemos situações que nos fazem questionar a veracidade dos fatos, mas são poucos os que percebem, porque estamos sempre muito presos a nós mesmos. A vida se passa na velocidade do bater de asas de um beija-flor, mas a beleza que existe nele é o que faz a diferença. Vocês quatro, por exemplo, ultrapassam qualquer limite de insanidade, mas, mesmo assim, são especiais e fundamentais para o que está aí dentro de você! Quando estiver pronta, vai deixar de fantasiar uma vida e passará a vivê-la.

Sorrio, com as lágrimas já começando a invadir os meus olhos.

— Eu gostaria muito de poder ter um amor, sabe? – Seco os meus olhos com a ponta dos dedos. — Alguém para partilhar as minhas ideias, os meus sonhos, os meus dias. Alguém que me ajude a enfrentar todas as minhas inseguranças, os meus medos e, claro, todos os dilemas – olho para ele. — Por que o amor fere tanto, padre?

— O amor não fere, Zoé. O que fere são as expectativas. Um relacionamento é um laço construído a dois. Você não pode exigir que a pessoa certa apareça, simplesmente, colocando todos as exigências que você idealizou. Um relacionamento se torna forte quando as duas almas se encaixam uma na outra, com todas as manias, gostos e pensamentos. Mas é claro que todos podem mudar. E devem! Mas os dois mudando juntos, para melhor. É uma questão de equilíbrio.

Viro o meu rosto para ele.

— A Dona Regina diz que não posso, jamais, me apaixonar. Ela teme pelas outras três.

— E ela está certa em se preocupar – ele levanta-se, olhando para a árvore. — Você só poderá dar o primeiro passo sozinha, quando resolver todos os seus conflitos internos. Veja bem, as árvores mudam suas folhas a cada dia que passa, mas suas raízes permanecem firmes. 

As Quatro Estações de ZoéOnde histórias criam vida. Descubra agora