Capítulo II

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 Fora o pequeno conflito com o rapaz do jornal pela manhã, aquele dia encerrava-se inteiramente entediante. Sei que não tardará para que a Dona Regina apareça no meu quarto e encha a minha cabeça com o famigerado sermão sobre encarar a realidade. E eu não tenho outra escolha a não ser ouvi-lo, de boca fechada, sem questionar.

Moro com ela desde que me entendo por Zoé. Não posso afirmar que é uma senhora divertida, infelizmente, mas, sem sombra de dúvidas, é uma das pessoas que mais confio em todo o mundo. Ela me criou como se fosse sua filha, mas não consigo chamá-la de mãe e, mesmo que eu tenha que ouvir as duras palavras que saem de sua boca, sei que está certa e que apenas deseja o meu bem.

Meus pais me deixaram para adoção no início da minha vida e presumo que seja porque eram jovens demais para cuidar de mim – ou, então, foram ingênuos o suficiente para perderem a oportunidade de me transformar em uma estrela de Reality Show e ficarem ricos. Mas é difícil não ter uma lembrança concreta, uma carta ou algo do tipo que possa responder o mínimo das minhas perguntas.

A Dona Regina disse que, assim que cheguei à sua casa, comecei a apresentar quadro elevado de febre e muita agitação, e, mesmo indo várias vezes ao médico e tendo que ingerir uma centena de antibióticos, não tive nenhum diagnóstico ou melhoramento. Mas as mudanças mesmo aconteceram em uma manhã de verão. Eu tinha uns quatro ou cinco anos e, de uma hora para a outra, comecei a agir como uma mulher adulta, usando batom e salto alto. Aos poucos, com o passar dos meses, junto com a personalidade, comecei a me transformar drasticamente, num dia agrisalhando os cabelos, no outro tendo TPM. Foi isso o que fez com que ela quase surtasse e me aspergisse com água benta durante uma semana. Felizmente, ela se acostumou e compreendeu que eu era diferente. Desde então, é ela quem tem me ajudado a sobreviver.

A porta do meu quarto se abre e, de forma inconsciente, finjo estar dormindo. Ouço a respiração forte da mulher se aproximar, como se fosse um enorme caminhão. Ela está me observando e isso me deixa com vontade de rir. Não gosto de ser observada dessa forma. Estou cansada e não há motivo para não deixar o sermão para amanhã. Talvez possa até ser esquecido. Nunca se sabe.

Ela fecha a porta pouco depois, mas me sinto incapaz de fazer qualquer movimento. Então, sem perceber, adormeço.

Os meus sonhos são tranquilos e comuns. Em um deles, recebo um Oscar de melhor atriz diretamente das mãos da minha melhor amiga e confidente Vicky Nevada, ao estrelar um filme dirigido por Tim Burton sobre uma centena de gafanhotos que comem carros voadores.  Na premiação, Vicky usava um vestido feito de casca de melancia e o seu microfone era um sabre de luz. No outro sonho, eu havia brigado com uma apresentadora de televisão por causa dos direitos autorais de um canção que falava sobre a peste bubônica e meteoros feitos com ossadas de dinossauros, atrás de um ferro-velho, numa ilha que tinha um vulcão que expelia pasta de amendoim. 

Quando o vento sacudiu a janela do meu quarto, acabei despertando. Como de costume, tateio cada parte do meu corpo para me identificar: seios médios, cabelos longos, cílios grandes. Ótimo, ainda sou a Zoé. Gostaria muito de continuar deitada na cama e voltar para os meus sonhos, mas já adiei o despertador tantas vezes que tenho receio de olhar as horas.

Mentira, eu nem programei o despertador.

Contrariada, me arrasto para fora da cama, puxo um sobretudo xadrez e o jogo por cima dos ombros. É inevitável não me olhar no espelho, pois vivemos em uma relação delicada. Gosto do meu corpo, mas também gosto de mudanças. Sou uma garota muito bonita e exigente comigo mesma, e tenho a certeza de que, se fosse dez centímetros mais alta, estaria no auge da minha carreira de modelo em Milão. Entretanto, como não se pode ter tudo, me contento em mudar o meu cabelo e receber todos os clássicos elogios que costumo ouvir. Às vezes, não faço nada, mas digo que aparei as pontas apenas para ouvir o quão mais bonita fiquei. Também tenho um incrível par de olhos verdes e um nariz pequeno e fino, mas sofria de estrabismo na infância e fiz uma correção de desvio de septo – outra coisa da qual ninguém precisa saber ou lembrar. Não gosto de receber críticas. Quando era pequena, desmaiei um garoto que caçoou de mim no café, apenas com um soco no rosto e uma cadeirada nas costas. E ainda por cima fiquei com sua caixinha de madeira. Frangote.

Pego uma escova e tento desembaraçar o meu cabelo louro, mas desisto e sigo para a cozinha. O cheiro está muito bom. A Dona Regina deve ter experimentado uma nova receita ou, o que é mais provável, posso ter sido abduzida. Ela adora viver na mesmice e me obriga a compartilhar seus fastidiosos momentos. Mas não posso reclamar. Ela me adotou e me criou sozinha, mesmo com todos as minhas circunstâncias, apesar de saber que foi ela quem tirou a sorte grande, claro, afinal, sou o maior presente da sua vida.

— Desejei tanto que o dia estivesse quente – ela reclama, fechando a cara e atravessando a cozinha, ansiosa, assim que me vê segurando um dos bolinhos de ameixa. — Vi na previsão do tempo que hoje iria fazer calor. Maldito jornal mentiroso! A Teresa sempre mantém as coisas em ordem e acorda no horário. Ela, sim, tem compromisso. E não come as coisas da cafeteria, nem se atrasa.

— Bom dia para a senhora, também, Pão de Forma – respondo sorrindo, dando uma boa mordida no bolinho. — Não sei se já reparou, mas não se vende café em dias quentes – fecho um dos olhos. — Hum... isso aqui está uma delícia. Precisa fazer mais.

Ela me repreende com seus pequenos olhos enrugados e severos. Ao menos, não se lembrou do sermão.

— É por isso que juntamos dinheiro nessa época fria – ela diz, ranzinza, jogando-me o avental da cafeteria. — Ande, vista-o! O dia mal começou e já estamos cheios de clientes. A propósito, recontratei a Brenda.

Coloco o avental e largo o bolinho sobre a mesa, enraivecida.

— Nem ouse reclamar! – Ela interrompe, apontando o dedo para mim. — Se fizesse o seu trabalho direito, não teria feito isso.

Me viro, caminhando em direção à porta que leva à cafeteria. Moramos nos fundos, numa casa pequena de três cômodos.

— Santo Deus! – Ela exclama horrorizada. — Vá vestir uma calça, garota! Onde está o seu juízo? Não acredito que ia trabalhar de calcinha! Não sei mais o que fazer com você, Zoé. Sinceramente.

Abafo uma risada e volto para o quarto. A Dona Regina é uma boa pessoa e adoro provocá-la, pois as suas bochechas molengas tremem para cima e para baixo quando está irritada. E preciso ter meus últimos momentos de diversão, antes de sair por aquela porta e ter que encontrar a Brenda.

Maldita Brenda!

As Quatro Estações de ZoéOnde histórias criam vida. Descubra agora