cap. 15 | mio

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Mio

Quando olho para o espelho aquela manhã, tudo o que eu vejo é: 

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É assim quando chego no colégio também. Recebo diversos olhares atravessados pelos corredores. Me sinto como um animal, preso em uma cela no zoológico. Os estudantes são como os visitantes. Alguns parecem curiosos a respeito da minha espécie. Já outros, soam indiferentes. Como se não ligassem caso eu entrasse em extinção.

Na sala de aula, é ainda mais estranho. Percebo que ficam em silêncio quando eu entro. Estão me avaliando. Não sei se Glamour ainda espera que eu me sente ao lado dos perfeitos, mas a verdade é que não estou dando a mínima. A ignoro. Assim como ignoro Brenda e Filipo. Assim como ignoro o restante dos alunos. Mas eu tenho um vislumbre de Ken. Está sentando em sua carteira de costume. Ele mantém o olhar baixo.

Me sento sozinho no fundo da sala pela manhã. No intervalo para o almoço, lancho sozinho também. À tarde, enquanto assisto a última aula, ainda estou sozinho. Estávamos no início da semana. É imensamente desanimador recordar que hoje ainda tenho treino de futebol. Quando o professor nos libera, os garotos que estudam comigo e fazem parte do time, tratam logo de dar um fora. Menos um. Ele propositalmente espera todo mundo sair de sala para falar comigo. Confesso que faço o mesmo.

– Mio. – Ken se aproxima, com cuidado. – Eu sei que pisei na bola.

Fecho minha mochila. Logo depois a jogo sobre as costas.

– E por que você acha isso? – Olho diretamente na cara dele. Provavelmente o incomoda, porque ele desvia o olhar em seguida. Reparo que seus olhos estão mais fundos do que de costume. É compreensível, devido a ressaca. Ou quem sabe, talvez, algum resquício de remorso não o tenha deixado dormir direito à noite.

– Qual é... – Ele fala. – Eu sei que você tá com raiva de mim.

Me levanto. Fico frente a frente com ele.

– Raiva? É isso que você acha? – Pergunto.

Estamos perto demais para ele fugir agora, assim como eu queria. Eu precisava olhar nos olhos de Ken. Precisava que ele soubesse o que eu estava sentindo.

– Você não tá? – Ele pergunta. Sua expressão é tão meiga naquele momento, que se eu não o conhecesse, jamais diria que era o mesmo garoto daquela festa.

– Ken, eu não ligo de as pessoas saberem que eu sou gay. Da mesma forma que eu não ligaria se soubessem que eu sou hétero, bi, pan ou não binário. Eu tive uma excelente educação na minha casa a respeito da sexualidade. Eu sei que é difícil para algumas pessoas entenderem, mas o caráter não está ligado a quem você beija, transa ou constitui uma família. Quando você resolveu me tirar do armário na sua festinha, você também tirou o meu direito de decisão. Era uma coisa minha. Eu devia escolher o momento, o lugar ou as pessoas que saberiam. Apenas eu. Então não. Eu não estou com raiva de você. Eu estou decepcionado, mas é comigo mesmo, por ter achado que podia confiar em você.

Espero alguns segundos, para ver se ele tinha mais alguma coisa para falar. Acho que não tem. Ken apenas fica lá parado. De cabeça baixa. Dou meia volta e começo a sair de sala.

– Mio. – Ken acaba falando. Sua voz soa absurdamente frágil. – Você vai contar sobre mim?

É decepcionante ouvir aquelas palavras.

– Não se preocupe. – Paro por um momento. – Eu não sou igual a você.

Uma hora depois estou no ginásio, assim como todos os outros jogadores. Tem de longe o pior clima de todos. Garotos em sua maioria são machistas. São perfeitos reflexos de um preconceito enraizado na sociedade. Eles não precisam me dirigir uma palavra. O verdadeiro desprezo pode ser sentido através dos olhares. De qualquer forma, eu precisaria me acostumar. Minha vida seria assim de agora em diante. A escola era só uma etapa do que eu precisaria enfrentar pelo resto da minha vida. Eu sei que podia parecer assustador, mas eu sabia que o mundo real, o que eu encontraria além dessa academia elitista, era bem pior.

Perfeitos [✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora