cap. 31 | mio

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Mio

Eu tinha tudo para dar errado nessa vida. Fui abandonado ainda bebê, com dois meses, em um abrigo no Taiwan. Nunca conheci meus pais. Provavelmente, nunca vou conhecer. Jamais saberei porque eles me rejeitaram, e para ser sincero, eu nem me importo. Porque com dois anos de idade, eu fui adotado. Eu sou um asiático, rejeitando pela própria família, adotado por duas mães lésbicas, e gay. Como eu disse, eu tinha tudo para dar errado. Ao contrário de Ken, que tinha tudo para dar certo. O bebê privilegiado, nascido em berço de ouro. Sempre teve os pais a sua volta. Quando criança e adolescente, descobriu o poder da popularidade. Sempre teve os amigos mais legais. A escola toda lambendo o chão que ele pisava. E olha só agora. Olha só como tudo terminou. Dê uma boa olhada, e nunca se esqueça, porque essa é a vida real. Um dia você é o herói. No outro você é o vilão. Um dia você é amado. No outro você é repudiado. Um dia você tá vivo. No outro você tá morto.

Desperto, por volta das uma da madrugada, com o toque do meu celular. Deixo com que a ligação caia, mas segundos depois, o barulho reinicia. Estico meu braço até o criado. Alcanço o aparelho, que não para de vibrar. Reviro meus olhos, automaticamente, quando vejo o nome na tela.

– Mio? – Escuto a voz de Glamour, do outro lado da linha.

– É sério? – Resmungo, ainda sonolento. – Já são quase uma da manhã...

Glamour fica em silêncio, por alguns segundos. Tudo que eu consigo ouvir é sua respiração, densa e ofegante, diretamente contra o meu ouvido.

– Mio... – Quando ela fala dessa vez, percebo que está chorando. – É o Ken.

Sinto o ar escapando dos meus pulmões. Apenas naquele momento, começo a raciocinar. Aquilo não era uma pegadinha, ou um trote. Até porque, Glamour não jogava daquela maneira. Ela estava me ligando, em plena madrugada. Alguma coisa muito grave havia acontecido.

– O que aconteceu? – Pergunto, já de pé.

Glamour não para de chorar. É assustador.

– Glamour, me fala! – Insisto.

Aos poucos, ela parece ir controlando sua respiração.

– Trouxeram ele para o hospital. A gente já tá aqui... – Ela lamenta. – Mio, o Ken tentou se suicidar.

Por incrível que pareça, não penso em Ken se mutilando. Ou cortando seus pulsos, como eu sabia que ele já havia feito. A imagem que se forma na minha cabeça é diferente. Estamos Ken e eu, sozinhos em seu quarto. Nossos lábios se tocando. Foi a primeira vez em que eu enxerguei algo a mais dentro dos seus olhos. Eu vi a vulnerabilidade. A fraqueza. A dor. Nesse momento, é totalmente pavoroso imaginar, que talvez eu nunca mais veja de novo.

– Eu tô indo pra aí. – Aviso.

Glamour me passa o endereço. Troco de roupa. Minutos depois, estou dentro de um Uber, em direção ao hospital. Minhas unhas estão cravadas contra as palmas das mãos. Tão fortes, que eu as sinto perfurando minha pele. Aquela viagem parece uma eternidade. O destino era a completa incerteza. Quando chego, obrigo minhas pernas a funcionarem. Entro no prédio enorme. Vou até a recepção. Antes que eu possa de fato interrogar uma enfermeira, visualizo Glamour a alguns metros, enchendo um copo com água.

– Mio... – Ela sussurra meu nome, quando me aproximo.

– Qual o estado dele? – Pergunto, de cara.

Glamour engole em seco. Nunca a vi desse jeito na vida. As lágrimas secas podem ser vistas contra seu rosto. O rímel preto desce espesso, abaixo de seus olhos.

– Ele entrou em coma. – Ela prende o choro.

Não. Não era possível. Mordisco o lábio inferior, tentando controlar o nervosismo. Não adianta. Eu não sei o que fazer. Não faço ideia. Mas consigo ouvir uma voz baixinha, dentro da minha cabeça. Ela não para de dizer: "É sua culpa".

Perfeitos [✓]Onde histórias criam vida. Descubra agora