Me inspiro em uma só pessoa: Boudica, conhecida como Boadiceia ou Boadicea, cuja melodia feita mais tarde em sua homenagem ecoa neste momento em minha mente e em todas as células de meu corpo, fazendo-me sentir como uma bárbara, uma rainha guerreira repleta de ódio e vingança. A estrategista, feroz, e a mais incomparável das oradoras femininas da história humana, que teve fim trágico, mas que ao menos conseguiu afastar na época por um bom tempo, o domínio romano sobre a antiga Inglaterra, como a grande rainha celta que era.
Infelizmente não existia televisão em seu tempo para eu vê-la gesticular e falar, mas haviam relatos históricos de como ela o fazia. Recentemente fizeram um novo filme impressionante em que a atriz que encarnou a protagonista foi ezímia em seu tom de voz, olhar e gestos ao discursar. Fiz uma adaptação disso voltada a minha própria personalidade.
Eu e Boudica temos muito em comum: a perda de entes queridos na guerra; a opressão de um Poder corrupto sobre seu povo; o desejo visceral por vingança e liberdade. Minhas muitas conversas com Akahra, a sacerdotisa celta exilada na embaixada, me ajudaram a me conhecer melhor e explorar meus dons naturais. Isto, aliado às aulas de oratória de Snow, me deram as ferramentas de que precisava.
Hoje é 23 de Abril de 3199, dia da Colheita em Socrática, e meu aniversário, curiosamente é no mesmo dia de Angela, a verdadeira, dia 8 de Maio. Como a maioridade aqui se dá aos 21 anos, os tributos de Socrática devem ter idade entre 14 e 20 anos. Também sou cidadã do Distrito 8, mesmo sendo uma cidadania de honra, mas ela é oficial, portanto preencho todos os requisitos para ser aceita. Não há regra alguma na Declaração da Colheita, como aqui é chamada, que me impeça de participar, e nem mesmo a rainha, se quisesse, poderia me impedir de subir esses degraus... exceto talvez estas muletas. Quando tive a ideia de usá-las para disfarçar meu mancar, nunca pensei em como podia ser difícil subir degraus com elas. Mas antes de subir, a carreirista psicopata de quem tomei o lugar, veio descendo furiosa as escadas me encarando. A multidão começou a me vaiar em reprovação ao meu oferecimento. Uma mascarada de muletas. É admissível que a cena seja cômica para quem a assiste. O que uma mascarada de muletas pretende fazer nos Jogos Vorazes? Vencer? Piada. Mais vaias. Os pacificadores pegam a psicopata pelos braços ao perceberem que ela estava pronta para me dar um soco. Mas eu estava pronta pra dar uma muletada na cara dela se tentasse. Malho na academia 30 minutos por dia, e estou em ótima forma, mais forte que aos 16. Só minha pontaria que nunca mais treinei, porém, se o que tenho em mente funcionar, não precisarei dela. Eu só preciso entrar na arena. Só isso. Se me explodirem imediatamente ao final da contagem regressiva, ao menos tentei lutar sem fugir.
Largo a muleta esquerda no chão e sou escoltada pelos pacificadores até a escada. Vou subindo mais facilmente agora. O prefeito e a oradora estão me chamando ao microfone para que eu diga meu nome. Solto a segunda muleta e caminho mancando, o que faz as vaias se silenciarem lentamente. Fico de frente ao microfone e retiro as faixas da máscara, encarando a todos com austeridade, e olho ao redor aquilo que antes eram vaias se transformarem em lágrimas, mãos tampando as bocas em meio a gritos de surpresa. Falo com eloquência e a rebeldia que me é nata, dispensando apresentações:
- Eu, Angela Mennonite, venho aqui não para lutar nem matar ninguém. Muito pelo contrário. Me ofereço como sacrifício para que isto pare. Um dia, cedo ou tarde, todas as coisas terminam, e vim para acabar com os Jogos, pois não suporto mais ver crianças e jovens serem tributadas como se fossem gado. Somos pessoas! Temos direito a nossa dignidade, e prefiro morrer como um de vocês a ver mais sangue sendo derramado por nada!
Faço uma pausa, em meio aos aplausos, gritos e gemidos, e olho para a câmera principal. Mas não é um olhar qualquer que faço. Olho inclinando um pouco meu corpo, como se tivesse um recado secreto para dar a um cedro na floresta, aos sussurros, como quem diz "foge daqui e se proteja", porém passando outro tipo de recado:
- É hora de agir. - sussurro ao microfone, como se estivesse olhando diretamente nos olhos de Snow ao fitar a câmera, na esperança de que ele entenda que o momento chegou, e que criei a distração de que ele tanto esperou por toda a sua vida de cobra.
Era só para eu ter dito meu nome, mas o prefeito e o chefe dos pacificadores que me têm respeito, me permitiram falar o que queria. Enquanto pronunciava estas palavras com emoção profunda e eloquente aos berros, também gesticulava como a atriz que interpretou Boudica, ou melhor, Boadicea. Eu podia notar facilmente a petrificação inicial dos ouvintes com meu forte discurso.
Um discurso, para ser contagiante, precisa de gestos, olhares e tons de voz conduzidos pelo próprio sentimento da alma. Nada de discursos políticos. As oratórias políticas são apenas palavras vazias bem enfeitadas para agradar ao público-alvo, ou a um público genérico, conforme seu conteúdo. Há um enorme abismo que separa o discurso de um grande político do discurso de um líder nato. Este último consegue gerar fanatismo em multidões, como uma seita, que o segue cegamente até o abismo sem reclamar, ao passo que o primeiro pode ser facilmente esquecido.
O que intento com este curto discurso é fazer com que todos queiram mais... que queiram me ouvir mais, e quanto mais eu falar, mais chances terei de ser bem-sucedida.
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Jogos Vorazes - O Fim da Esperança (Trilogia 1/3)
FanficKatniss é temida por países que querem evitar uma onda de revolução global inspirada pelo Tordo de Panem.