24-Conte você

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Tomando posse do microfone que está próximo à escada, chamo a atenção dos convidados, dando duas batidinhas sob o tecido esponjoso.

Meus pais finalmente aparecem e estranham a atitude.

Isabel cambaleia um pouco até se juntar a eles, encheu a cara, menina travessa.

— Boa noite, peço atenção de todos vocês. — Comunico percorrendo o olhar em cada rosto presente aqui.

Júlia permanece quieta perto da coluna grossa e Marcos quase escondido próximo a porta — ah, mas ele não vai fugir de mim, os dois não irão escapar não.

A conta chegou.

Victor aparece tomando muito cuidado em cada passo que dá, porque mesmo eu tendo o ajudado a treinar cada passo é decorar os centímetros da casa, ainda não tem 100% de firmeza.

A mulher do cabelo pixie loiro e vestido tomara que caia cinza névoa em conjunto com o chale de seda igual e as luvas também condizentes, se posiciona a frente do círculo que concentrou diante de mim.

Não sinto barreiras, não sinto piedade, tampouco empatia — apenas fúria, revolta e maldade, egoísmo talvez.

— Queria dizer umas palavrinhas que o aniversariante escreveu, a respeito da Júlia. — Agora estou lembrando... está muito claro... O carro, a mensagem, Marcos arrumando a gravata naquele dia.

Como fui tão boba em não perceber.

Dirijo o foco visual a loira entediada e ao meu lado, Victor se posiciona alegre, satisfeito por minha gentileza pró-ativa.

Desdobro o papel.

— Júlia, escrevi estas palavras para te mostrar o quanto te amo, o quanto você é importante para mim, cada segundo que passei do seu lado é uma dádiva, nunca conheci alguém como você, é carinhosa, paciente, independente, compreensiva, batalhadora, inteligente e... — Dou uma curta pausa para respirar e mordo a língua de propósito.

Uma vadia fetichista.

Júlia observa ansiosa e grata por tanta admiração, desperdício de amor.

Vejo o quanto Victor está feliz do meu lado, o brilho vital em seus olhos, a ingenuidade do coração dele... não farei isto agora, apenas por ele.

— Uma mulher incrível. — Digo sem nenhuma emoção e jogo o papel por cima do ombro, quero cuspir onde ela pisa, ordinária.

Todos aplaudem o foco do show agora.

Ouço Victor agradecer e de repente sumir, simplesmente evaporou.

— O que deu em você? — Ouço Isabel quebrar a tranquilidade letal da minha mente prisioneira.

Cada sílaba vira borrão em minha mente, cada passo me faz sentir uma viajante de mundo paralelo, não me sinto eu mesma — nada faz sentido, apenas sou um amontoado de ossos vagando.

Ignoro Isabel que berra meu nome diversas vezes de forma escandalosa e vou para o banheiro, solto um grito liberando toda esta maldição entalada e espalmo a pia furiosa.

Arranco os sapatos insuportáveis do pé e os atiro sob o piso, a maquiagem já está borrada por causa do choro, meu peito dói como nunca senti antes. Flechas invisíveis espetam diversas vezes o estômago.

Nem sinal de alguém que possa vir e né tirar deste pesadelo real a qual eu mesma me meti, a cilada foi culpa deles, porém eu escutei e vi tudo.

Basta, vou enfrentar a linha tênue que construí após omitir a verdade nojenta por trás dos dois crápulas.

Pego meus sapatos e sigo descalço mesmo pelo chão frio, até cruzar com um garçom.

— Me dá isso aqui, vou precisar. — Digo fervendo em ódio ao pegar uma taça de champanhe e virar a bebida fraca que desce borbulhante por minha garganta, a velocidade dos meus passos chega a fazer barulho sob o piso.

Acabo perdendo o controle e começo a chorar de novo, desta vez não irei conseguir para tão cedo.

— Leila? Aonde vai. — Ouço a voz grotesca do falso santinho que entra em meu caminho.

Com o ódio nocivo que estou, sou capaz de acertá-lo com a merda do sapato agora mesmo, foda-se a educação.

— Aonde eu vou? Engraçado perguntar isto...Acho que está na hora do seu irmão saber quem você e aquela vadia mimada oportunista são na realidade, me dá nojo. — Falo de forma ríspida fixando o olhar embaçado por lágrimas nele.

Victor fica mais pálido e espantado.

— Sai da minha frente agora. — Ordeno fechando o punho e soltando os sapatos.

Marcos me impede de passar, segurando meu braço com brutalidade num puxão, desequilibro para trás sentindo o estômago revirar.

— Está ficando louca? Você não vai a lugar nenhuma sua linguaruda intrometida! — Vocifera em minha face e o hálito de whisky morno piora o enjoo.

Dirijo o olhar para os dedos dele envolvendo minha pele.

— Tire a pata imunda de mim neste exato momento, se não quiser sentir o peso da minha mão nos seus dentes. — Ameaço disposta a agredi-lo se ousar tocar em mim outra vez, babaca. Pelo visto é hereditária a sujeira de um Cavalieri né.

Marcos me fuzila com os olhos verdes, mas solta meu braço violentamente, aproveito e atiro o sapato na testa dele num movimento tão rápido que mal sei como consegui fazê-lo e não cair no chão.

Sigo para o jardim, a procura da vítima desta maldita traição.

Tão sufocada que a espinha gela por inteiro e quase não enxergo um palmo a minha frente por ter a visão comprometida por lágrimas quentes invasoras.

Esmago um pedaço de vidro que feriu minha perna ao adentrar o jardim, o embrulho estomacal não passou — luto contra a vontade de sair correndo e me esconder debaixo das cobertas, deprimida.

Porém sou Leila Tavares, irei ser o que a vida exige que eu seja.

Está frio, mas estou tão quente que quase arrisco dizer: febre.

O cansaço chega e eu finalmente paro de correr debaixo do azul imenso noturno.

— Aí está você, te achei. — Balbucio ofegante e ainda chorando, vendo ele deitado sob o bando de madeira — agora vestindo uma blusa vermelha fina sem botões ou zíper, os cabelos escuros de urso espalhados pela madeira — está calmo, sendo iluminado graciosamente por raios lunares... perfeito... para receber a revelação deplorável que vem a seguir feito bomba.

A dúvida é: será que cada segundo que passamos juntos, cada minuto que dediquei, cada gesto e toque, será suficiente para que ele acredite em mim?

Busco forças para me recompor e dizer finalmente.

— Estou sempre aqui para você. — Diz ele em tom alto suficiente para que eu escute, ainda sem se movimentar.

Soluço diversas vezes até engolir o choro.

— Por que está chorando? Foi o Marcos que... — Antes de completar a própria frase sugestiva, Victor levanta e cogita disparar para dentro da casa.

— Espera! — Impeço ele antes que siga em frente furioso, colidindo com seu corpo.

— Tenho que te contar uma coisa, venha comigo. — Expresso firme, apesar da mão tremer muito.

Estou respirando com tanta dificuldade que chega a doer a falta de ar.

Não espero a reação fácil dele e apenas o conduzo a passos velozes para o corredor onde fica o quarto de hóspedes.

Meus calcanhares latejam de dor, a cabeça girando feito uma montanha-russa descontrolada e a boca seca — córneas ardendo, fumaça tóxica atingindo a garganta.

Três passos: Gasolina. Fogo. Explosão.

É hora de lançar cabeças na fogueira.

𝘾𝙤𝙢𝙤 𝙚𝙪 𝙩𝙚 𝙫𝙚𝙟𝙤 [Finalizada] Onde histórias criam vida. Descubra agora