Mila

Capítulo - 14

Eu havia sonhado com aquela maldita estátua da Piazza Navona*. Tudo culpa de Lorenzo e sua lenda idiota.

Ela corria atrás de mim com o tridente que ela segurava e chamava meu nome com uma voz medonha. Foi o que me levou a sair de casa às seis horas da manhã de sábado até o local onde estava a estátua.

Já faziam dez minutos que eu estava parada de frente para a fonte, com as mãos nos bolsos do meu casaco e os olhos vidrados na água límpida.

— Não é educado invadir os sonhos alheios — resmunguei para o homem de pedra. Ele continuou com sua face congelada e raivosa. De alguma forma aquela coisa havia me chamado até esse lugar, como um magnetismo gerado pela memória de já ter estado ali. Só que em circunstâncias diferentes.

— Não que eu acredite na história claramente inventada de Lorenzo, mas aqui está a sua moeda. — Atirei a mesma com força na fonte e peguei outra para arremessar. — Vou jogar duas para garantir que você fique bem longe de mim e dos meus sonhos.

Quando cheguei na pensão ainda era um pouco cedo, então tive tempo de preparar um bom café da manhã para Martina. Estava alternando em tirar bolinhos do forno e colocar a louça na mesa quando Jean me liga.

— Espero não ter acordado você — disse como cumprimento.

— Não acordou — sorri. — Estava preparando o café.

Ele fez um grunhido de apreciação.

— Eu aposto que suas mãos de ouro prepararam algo incrível.

Não segurei o riso.

— Já disse que "mãos de ouro" é um exagero.

— Ah, de jeito nenhum. É um elogio merecido — rebateu convicto.

Revirei os olhos sorrindo.

— Certo, Elogiador, o que acha de se juntar a nós então? — sugeri pensando que uma pessoa a mais na pensão poderia animar os ares.

— Maravilha! Estou levando pães frescos, chego em alguns minutos — disse antes de desligar.

Terminei de arrumar a mesa e até acrescentei um jarro com flores alaranjadas que perfumaram a sala de jantar. Demorou menos de cinco minutos para a campainha tocar e Jean aparecer com um sorriso enorme no rosto. Ele tagarelava algo sobre como os pães eram diferentes em cada lugar e como pareciam carregar sua essência, mas minha atenção foi para os passos calmos que soaram na escada acarpetada.

Martina tinha o rosto abatido de preocupação, porém seus olhos ainda brilhavam pela esperança, e talvez pela alegria da companhia também.

— Sra. Martina, espero não ser um incômodo aqui — Jean disse, não querendo ser invasivo por estar ali.

— Ora, querido, é um enorme prazer recebê-lo. Qualquer amigo da Mila é meu amigo também — ela piscou para ele, que corou.

Admirei o contraste das bochechas, agora rosadas, de Jean e as mechas de seu cabelo preto que emolduravam seu rosto quadrado. Ele colocou o cabelo atrás da orelha de modo um tanto encabulado, que achei graça. Desviei os olhos quando os dele se fixaram em mim.

Limpei a garganta, antes de dizer para a senhora:

— Sente-se, vou servi-la hoje — sorri para ela.

— Assim ficarei mal acostumada — brincou ela em resposta.

Como dito, servi Martina enchendo-lhe a xícara de café e o prato com bolo, pão e frutas. Recebi uma expressão de agradecimento genuíno.

Eu estava prestes a pegar o café quando Jean foi mais rápido, mas ele não colocou na xícara dele, colocou na minha. Ele dispôs na minha frente as comidas para que ficassem mais próximas de mim e mais fácil de pegar, um ato de gentileza que reconheci. E foi a minha vez de ficar envergonhada, porque Martina assistia tudo.

Entretanto, Jean não pareceu nem um pouco preocupado com o olhar da dona da pensão ou o fato de estar sendo um cavalheiro comigo, ele apenas agia como se aquilo fosse uma retribuição pelo convite.

Bebi meu café para esconder o sorriso bobo que insistia em se formar nos meus lábios.

Como sempre, foi bom ter visita. Um pouco de alegria e leveza se instalou no ambiente causando certo alívio ao meu coração. Às vezes bastava um pouco disso para afastar as sombras geradas pelos problemas.

Jean me deu carona até o hospital, depois seguiu seu caminho para resolver seus próprios assuntos. Era melhor que ele não se envolvesse tanto nessa situação, já haviam pessoas demais naquilo.

Passei pelo costumeiro processo antes de entrar no quarto e encontrar Lorenzo ainda desacordado.

— O que eu disse sobre você acordar logo ou eu rasparia seu cabelo? — disparei andando até a cama dele.

Eu tinha pego as flores alaranjadas da mesa de café da manhã da pensão para colocar em um jarro naquele quarto inteiramente branco que já estava me deixando louca. E, como planejei, elas deram vida ao cômodo.

Caminhei até onde Lorenzo estava e arrumei os cobertores sobre ele. Observei seu estado.

Não parecia nada com aquele rapaz emburrado que eu conheci de um modo um tanto desastroso. Nada das sobrancelhas franzidas, ou dos olhos verdes e metidos, nada da voz grossa e elegante, nada das palavras convencidas e do humor ranzinza. Nem mesmo o brilho que costumava ter nos cabelos dourados dele, as mechas cor de ouro agora estavam opacas e caíam sobre sua testa. Afastei-as.

Tudo parecia estranho, até o que eu sentia. Eu não tinha me dado conta de quando Lorenzo passou a importar para mim. Não tinha notado, até ver sua quase morte.

Toquei sua mão, esperando que ele apertasse a minha de volta.

— Eu não sei se você pode me escutar, seria até estranho se pudesse — ri nervosa. — Mas você precisa resistir, precisa fazer isso por todas as pessoas que estão aqui esperando por você. Sei que parece uma luta grande demais para enfrentar, mas eu prometo que te ajudo, só preciso que você acorde. — Minhas palavras ecoaram pelo quarto, voltando frias para mim. O silêncio era agoniante.

Aquilo era sufocante, ver alguém que antes estava cheio de vida e que agora estava preso em um coma. Eu queria poder puxá-lo para a consciência, poder fazê-lo voltar. Porém, tudo o que eu podia fazer era esperar.

Esperar, esperar e esperar.

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TRADUÇÃO DAS PALAVRAS COM ASTERISCO*

Piazza Navona - Praça localizada em Roma, sendo uma das mais célebres.