Capítulo 13: Os Filhos do Abismo

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Nathanael não conseguiu ver com clareza o que aconteceu. O estranho disse diversas palavras na Língua Proibida – a língua falada pelos demônios, e utilizada para fazer a Arte, como é chamada a magia demoníaca; alguns humanos também são capazes de praticar a Arte; por fim, essa magia é diretamente oposta à magia dos anjos.

Os dois anjos que seguravam o estranho caíram no chão de repente e convulsionaram. O inimigo juntou as mãos novamente. Tudo o que Nathanael conseguiu ver foi um borrão indo de um anjo a outro, os quais iam ao chão do navio sem asas e sem vida. Menos de quatro segundos depois, todos os anjos estavam mortos.

Surpreso, Miguel estava de olhos arregalados. Como aquilo era possível? Um ser que não era um Angelus Domini, mas que era mais poderoso que um arcanjo. Ele provavelmente era mais forte que o próprio Miguel. O querubim estava em choque; não conseguia se mover.

Nathanael gritou por seu nome diversas vezes, em vão.

O estranho disse algumas palavras em hindi, calando a boca de Nathanael. Ele não era mais capaz de abri-la.

O homem andou até a ponta do navio, próximo ao escudo que separava o mar do Abismo. Ele uniu as mãos mais uma vez. A palavra na Língua de Prata nas costas da mão dele mudou de "anjo" para uma mescla estranha dos símbolos para "proteção" e "abrir".

Bem à beira do navio, ele esticou o braço esquerdo para o escudo, em que ele havia desenhado com sangue humano um círculo feito de palavras – que pareciam formar poemas – em dezenas de línguas diferentes. Ele encostou a mão no centro exato do círculo e começou a recitar os poemas; conforme ele dizia as palavras, elas brilhavam em vermelho no círculo e em seu braço.

Quando ele disse a última palavra do último poema, diversas cargas elétricas vermelhas saíram de todo seu braço. Elas fizeram o escudo rachar exatamente sob a mão dele, onde maior quantidade de poder estava concentrado. As rachaduras aumentaram até formarem um buraco grande o suficiente para o navio passar.

O homem sorriu, juntou as mãos novamente e as palavras nas costas delas mudaram para "Sídero Theía". O navio passou a navegar no Abismo.

Estavam navegando há algum tempo. Nathanael sentia apenas o calor intenso daquele lugar, o que atrapalhava seus pensamentos e concentração. Sua boca ainda estava selada pela magia hindi. Ele tentou por diversas vezes usar a magia celestial mentalmente para destruir suas amarras, em vão. O "Sídero Theía", metal que apenas existia no Paraíso com o qual o navio era feito, não era afetado pela magia dos anjos.

O barco parou abruptamente.

Nathanael olhou para o homem. Então a resposta veio à sua mente. Mais uma vez, depois de quase três anos, o ex-Caído iria dar um passo dentro do Inferno.

****

O estranho pegou a vasilha com sangue humano, tirou os sapatos e desenhou nas costas dos pés um círculo parecido com o que tinha nas mãos, só que mais simples. No meio dele desenhou na Língua de Prata o símbolo para "proteção". Ele fechou o pote e carregou-o com si quando saltou do navio. Ele caiu em pé, como se o lago de fogo e enxofre fosse sólido e não líquido.

O inimigo deu alguns passos. Juntou as mãos e os símbolos nelas mudaram para um símbolo que misturava as palavras "invocar", "filhos" e "Abismo". Ele banhou as mãos com o sangue. Algumas gotas caíram no lago, produzindo um chiado, igual a quando água encosta em algo quente. Jogou o pote vazio para longe.

Ele abaixou e colocou as duas mãos na superfície do Abismo. Ele começou a recitar um mesmo poema em diversas línguas diferentes simultaneamente. O sangue espalhou-se pelo lago aleatoriamente, como pragas espalhando-se na veia de homens. O Abismo começou a borbulhar. O homem sorriu.

Um pouco a frente dele, a "lava" do lago esticou-se para cima de uma forma bizarra. Ela não possuía uma forma. Em volta dele, vários morrinhos surgiram e iam até onde a vista alcançava. Eram milhares de milhões.

Subitamente, os morrinhos dispararam para o céu na forma de estrelas cadentes e mais rápidos que balas de revolveres. Eles quebraram o escudo acima deles e ganharam a noite. O sorriso do homem abriu-se ainda mais. A estranha gosma que estava de frente a ele ganhou forma. Era um tronco humano, depois ganhou braços e pernas. E então uma cabeça.

O estranho sentiu uma mão em suas costas, e antes que pudesse impedir, ouviu palavras na Língua de Prata e na Língua Proibida.

****

Incendia kulak, Nathanael pensou alguns minutos antes. Suas mãos ficaram em chamas laranja parecidas com Fogo Celestial, mas eram, na realidade, o oposto.

Incendia kulak é, literal e respectivamente, "fogo" e "mão", na Língua Proibida. Juntas conjuravam um fogo na mão do mago. Com esse fogo, ele queimou no ferro a palavra "destruir" na língua dos anjos e dos demônios. Ele concentrou seu poder nessas palavras e as repetiu mentalmente. Forçou as trancas que o prendia até que elas arrebentaram.

Ele foi até Miguel, chamou-o, mas não obteve resposta. O querubim ainda estava paralisado de choque. Nathanael deixou-o de lado, cortou sua mão esquerda nos destroços de sua tranca. Escreveu em sua mão direita no idioma celestial e no infernal a palavra "expulsar" com sangue. Foi nesse momento que milhões de luzes laranja subiram aos céus.

Nathanael voou do barco para o Abismo. Viu o homem com as costas para cima. A parte mais aterrorizante, porém, era o outro que estava se formando da "lava" do lago. Sem nem ao menos pensar em tocar no lago, ele colocou a mão direita nas costas do estranho. Recitou palavras rápidas em ambas as línguas, Expulsou o inimigo do Paraíso, que desapareceu em um buraco negro que surgiu entre a mão de Nathanael e as costas dele. A criatura em forma de homem olhava-o; em seu rosto um sorriso sarcástico.

Todos os instintos do ex-Caído diziam-no para fugir imediatamente. Foi o que fez. Voou até o navio. Sem pousar agarrou Miguel pela cintura e continuou em direção a saída. Olhou para trás para ver o ser pousando na proa do barco, mas não de um voo e sim de um pulo. O barco inclinou-se para frente, levantando a parte onde estavam os anjos mortos.

O ser, então, passou a segui-los voando. Suas asas eram como as de um morcego, entretanto eram laranjas como o Abismo e tinham penas bizarras que pareciam ser feitas de metal. Finalmente, quando passaram pelo escudo, Miguel demonstrou alguma reação. Olhou em volta, sem entender, mas passou a voar sozinho tão veloz quanto Nathanael, que narrou rapidamente o que acontecera.

Mesmotendo Miguel ao seu lado, Nathanael sentia que morreria se um milagre nãoacontecesse.

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