Capítulo 35: França

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Levamos um dia e meio para chegar a Paris. Uma viagem como aquela na Terra não levaria mais do que dez horas, parando para descansar algumas vezes, porém aqui no meio do terreno inimigo, até que foi rápido.

Nós seguimos a costa da Itália até a cidade de Grosseto, onde abastecemos a moto, comemos e passamos a noite. A cidade estava completamente deserta, aparentemente todos os Filhos seguiram para a tomada de Roma. Não havia nenhuma alma não possuída também. Encontramos uma casa nos limites norte da cidade, um pouco mais isolada do resto, assim poderíamos com facilidade detectar algum intruso e se fugir fosse necessário, estaríamos próximos da saída que deveríamos tomar.

A noite foi tranquila. Tomamos banho quente e improvisamos uma refeição com o que encontramos na casa que nos hospedávamos. Nenhum Filho ou anjo passou por nós, então conseguimos dormir a noite toda sob a vigilância de Thais; Týr e eu estávamos completamente exaustos devido à batalha em Roma.

Acordamos por volta das onze horas, Thais descansou da noite em claro enquanto eu e Týr preparávamos o almoço. Partimos de lá por volta do meio dia e meia.

Cruzamos a fronteira com a França quase escurecendo. Foi necessário mudar a rota diversas vezes devido a patrulhas de anjos e Filhos que encontramos no caminho. Era realmente uma guerra. Algumas vezes eles lutavam. Pensei em ajudar aos anjos, porém Týr me trouxe a razão: eu não podia me meter naquela batalha mais do que já estava envolvido, pois ambos os lados eram inimigos. Pelo menos era o que aparentava.

Seguimos viagem um pouco à noite, enquanto deu. Porém, quanto mais nos aproximávamos do centro da França, mais a quantidade de Filhos aumentava. Evitamos cidades grandes como Monaco e Lyon, sabendo que lá estaria uma maior quantidade deles e de anjos. Estávamos nos arredores de Yonne quando decidimos montar acampamento.

Thais tirou a barraca da mochila encantada que Týr criou em Grosseto, onde poderíamos colocar diversos objetos de qualquer tamanho sem alterar o volume externo. Montamos a barraca e acampamos. Eu faria o primeiro turno de vigia, pois Thais estava cansada e Týr ainda não se recuperara totalmente da nossa luta.

Aquela noite não foi tão tranquila.

O dia estava amanhecendo quando avistei os Filhos – estava novamente no meu turno de vigia. Eles estavam a poucos metros de distância, seria impossível não terem nos notado. Eu tentei acordar Thais sem fazer muito barulho. Tapei sua boca para que não produzisse algum som que pudesse chamar a atenção deles, ela se assustou no começo, mas logo me reconheceu e percebeu a situação. Colocamos o máximo de coisas que conseguimos na mochila, deixando apenas a barraca para trás; o tempo era curto para desarmá-la.

Nós corremos pelo pequeno bosque – que também poderia ser uma praça – até chegar a uma estrada, onde deixamos a moto "camuflada" com galhos e folhas. A moto estava praticamente sem combustível. Andaria dois ou três quilômetros. Estávamos condenados, ainda mais pela súbita mudança de clima que nos atingiu.

Vindo do Norte e do nada, um vento gélido soprou de repente. No mesmo instante todo meu corpo tremeu, assim como Thais. Ela soltou um espirro.

– Droga. – Ela disse.

– O que foi? – Perguntei.

– O frio repentino. Sempre fico gripada quando isso acontece. – Sua fala também assustou-a.

– E as pessoas ficam doentes no Paraíso?

– Normalmente, não.

– São os Filhos. – Týr interveio. – O poder deles é tão grande que está afetando diretamente ao Paraíso. O clima aqui é sempre bom, ou seja, não muito frio ou calor. Esse tipo de vento que bateu agora normalmente não ocorre aqui. Assim como as doenças. O poder deles está afetando as almas aqui.

Então algo me ocorreu. Se Thais nunca ficou doente no Paraíso, e ela não tem como lembrar-se de sua antiga vida, como ela sabia que um vento como aquele iria deixá-la doente?

Eu repeti a pergunta para ela.

Thais não disse uma palavra, pois não sabia o que responder. Ela simplesmente sabia que ela era assim.

– Thais. – Perguntei olhando-a nos olhos. – Você se lembra de sua vida na Terra?

Para minha surpresa, ela contou-me uma história. Ela não soube afirmar com certeza se aquela era uma visão de sua morte ou não. Outra coisa me chamou a atenção: ela teve essa visão no mesmo dia que entrei no Paraíso. Eu a afetei do mesmo jeito que os Filhos afetaram o Paraíso.

Quando ela terminou de contar a história, as bochechas dela estavam muito vermelhas e seus olhos lacrimejavam. De repente, ela caiu. Consegui segurar seu corpo antes que batesse no chão, por pouco. Perguntei a Týr se ela podia curá-la de imediato, mas a fada me respondeu que ela não tinha um corpo propriamente dito e que qualquer doença que estivesse a afetá-la era uma doença da alma, em outras palavras, Týr não podia curá-la.

Usando magia, nós equilibramos a desacordada na moto e guiamo-la para Paris. Talvez aquele não fosse o melhor plano, mas não tínhamos escolha, lá com certeza encontraríamos um anjo que soubesse como curá-la. Aqui, neste lugar semi-habitado, seria complicado encontrar um ser alado.

Esse foi o pior erro que cometi desde que cheguei ao Paraíso.

Encontrei uma casa cujo aquecedor funcionava – não sei dizer por que no Paraíso há aquecedores – nos subúrbios de Paris, próximo e longe o bastante do centro. Nesse ponto já havia nevado alguns centímetros. Eu só não passei mais frio por que a febre de Thais me esquentou no caminho. Também encontrei um pequeno e abandonado posto de combustível na estrada. Entrei na casa carregando Thais e fui direto ao porão, onde liguei o aquecedor elétrico. Týr usou magia para nos esconder dos Filhos. Cheguei num quarto onde havia uma cama de casal king size com tantos travesseiros que me irritou tirá-los de cima da cama. Deitei Thais. Eu não fazia a mínima ideia de como tratá-la.

Týr disse para deixá-la com roupas leves – o que ela já estava usando. Encontrei toalhas de algodão no banheiro, molhei com água fria e coloquei sobre sua testa. Eu não sabia o que fazer. Aquilo não iria adiantar. Eu não tinha outra escolha senão a deixar sozinha e procurar por um anjo na cidade. Faltavam cerca de duas horas para o meio dia. Era o tempo que eu tinha para voltar com ajuda. Depois tinha que voltar para casa para alimentá-la.

Encontrei alguns casacos de pele num dos quartos da casa – que eram três no total. Vesti-os e sai. Týr usou uma magia poderosa para esconder a casa, o que gastou boa parte de sua energia. Eu decidi também não ir de moto, pois ela fazia muito barulho e chamaria atenção. Encontrei uma scooter que estava com a chave na ignição. O motor mal fez barulho ao ser ligado. Perfeito. Fui em direção a Paris, a cidade do amor.

O que eu não sabia era que aquela casa já tinha um dono.

Eque Paris era a cidade mais infestada de Filhos do Abismo do mundo.

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