Capítulo 19: Ashkelon

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Chegamos a Ashkelon quando amanhecia. Nós três estávamos exaustos. Aposto que Týr, quando aceitou a missão, não imaginou que essas coisas aconteceriam. Ela provavelmente estava arrependida de ter aceitado me ajudar. E Thais, o que deu na minha cabeça para trazê-la comigo? Se bem que não podia deixá-la a mercê daqueles Filhos do Abismo. Eu deveria levá-la para Nova Jerusalém. O quão longe eu estava da cidade com ruas de ouro?

A cidade estava completamente vazia. Talvez fosse muito cedo, mas não acredito que seja isso. Provavelmente era por causa dos Filhos. Mas estranhei por não haver nenhum sinal de luta ou confusão. Era como se a cidade toda estivesse dormindo ao mesmo tempo. Isso era muito estranho.

Seguimos até a marina mais próxima, procurando um barco. Dali nós iríamos para Itália e iríamos de trem até Londres. Chegamos a um porto onde vimos vários barcos a vela, se fosse na Terra eles provavelmente seriam de pessoas ricas, mas como aqui não havia dinheiro, eu não saberia dizer a quem pertenciam.

Entramos em um deles, todos eram muito parecidos. Não havia ninguém nele. Usando a magia de Týr colocamos a moto dentro do barco. Nós fomos até a cidade pegar mantimentos e gasolina. Eu torcia para que encontrássemos alguém que soubesse pilotar barcos, porque nenhum de nós tinha alguma ideia de como o fazer. Týr poderia pilotá-lo com sua magia, mas ela estava esgotada, não conseguiria nem ligar o motor sem desmaiar.

– Então... – Eu perguntei para Thais meio constrangido enquanto andávamos pelo píer. – Há quanto tempo está aqui?

– Quase setenta anos.

– O que? – Minha voz subiu duas oitavas de surpresa.

– É. Faz setenta anos que morri.

– Mas você não parece ter um dia a mais que vinte anos!

– E não tenho. Nós não envelhecemos, temos a aparência que queremos ter. Bem, mais ou menos. Não posso ficar parecendo outra pessoa; só posso variar dentro da minha própria aparência. Variar a idade.

– Entendi. E você escolheu essa aparência.

– Exato.

– Você pode mudar pra idade que quiser?

– É um pouco complicado, mas sim. Só que leva um tempo pra isso.

Permaneci em silêncio por um tempo, pensativo.

– Você não costuma falar muito, né? – Ela disse quando chegamos a um posto de gasolina próximo as docas.

– Não. Sou horrível em puxar assuntos.

– Percebi. Quando chegou aqui?

– Ontem pela manhã, mais ou menos.

Ela também não disse nada, deveria ser tão boa quanto eu puxando assunto. Nós enchemos vários galões de gasolina, por sorte do outro lado da rua havia um supermercado, onde pegamos dois carrinhos. Em um colocamos a gasolina, que deixei perto da entrada do mercado, o outro usamos para colocar comida.

Quando estávamos no corredor de bebidas, nós cruzamos com a primeira pessoa daquela cidade, mas seria melhor se não tivéssemos encontrado ninguém.

Era um homem de meia idade, ele estava meio curvado e de costas para nós. Devagar e silenciosos nós nos afastamos sempre olhando para ele, porém Thais esbarrou num refrigerante que caiu e explodiu, molhando nós dois e boa parte do chão, o homem olhou diretamente para nós. Aqueles olhos negros e laranja eram pura ferocidade, animalidade. Era puro instinto assassino. Ele urrou e avançou rápido na nossa direção, eu empurrei Thais, que caiu do outro lado do corredor. Antes que eu pudesse sacar a espada ele já estava em cima de mim. Tentei afastá-lo segurando seu pescoço, mas foi em vão. Ele era forte demais.

Eu ouvi o som abafado, como de uma batida. Ele caiu desmaiado para minha direita: Thais o acertara com um extintor de incêndio. Levantei rápido e cravei minha espada no peito dele, que se desfez na espiral de vagalumes prateados.

– Vamos embora. – Eu disse.

Thais concordou uma vez com a cabeça, largou o extintor e corremos para a saída. Pegamos os dois carrinhos e corremos o máximo que pudemos até o barco. Týr, que o tempo todo estivera em meu bolso, levitou os carrinhos e colocou-os dentro do barco. Nós ouvimos os urros de novo vindos do fim do píer.

Três Filhos perseguiam outra alma, uma que não tinha os olhos pretos e laranjas. Alguém que não estava possuído. Ele provavelmente nos vira de algum lugar e vinha correndo em nossa direção. Era bem provável que queria ir com a gente.

– Týr, não deixe que nenhum deles se aproxime do barco. – Eu disse e corri em direção as docas, esquecendo-me completamente que ela tinha de vir comigo.

Enquanto corria saquei a espada, e num movimento certeiro, cortei um deles – o do meio – do umbigo até o pescoço. O estranho sangue deles jorrou e ele se desfez nos vagalumes prateados. Pegos de surpresa, os outros dois se viraram para mim. O outro homem correu até o barco.

Antes que eles pudessem fazer algo, cortei o da esquerda na barriga e ele se desfez. O outro me atacou, eu desviei abaixando, ele passou por cima de mim. Dei uma cambalhota para o lado, de modo que eu ficasse um pouco mais afastado dele e pudesse me posicionar para atacar. O plano foi bem-sucedido, eu estava de pé novamente.

Ele investiu novamente com as mãos livres, como um animal. Consegui decepar uma das mãos dele depois de um tempo. Ele urrou de dor, o "sangue" jorrava do toco do braço. Cravei minha espada no pescoço dele, ele se desfez.

Olhei para a cidade. Então eu vi dezenas deles. Todos correndo em minha direção. Corri para o barco. Notei que o homem estava colocando gasolina no tanque de combustível.

– Você sabe pilotar essa coisa? – Perguntei assim que entrei no barco.

– Com certeza! – Ele parecia simpático.

As criaturas estavam se aproximando rápido, mas o motor já estava ligado e o barco em movimento. Eles não entraram na água. Será que não podiam nadar?

– Esses são diferentes. – Eu disse sem dizer para ninguém específico.

– É porque esses são os feridos de guerra. – Týr disse.

– Como assim?

– Bem, como eu lhe contei, eles foram criados pela Morte com nossa ajuda. Os Filhos do Abismo foram os primeiros inimigos de Deus. Então, obviamente, eles tinham que ser parados. Então houve uma guerra e numa guerra há feridos. E esses são os feridos, tudo que sobrou deles foi o instinto de luta e maldade.

– Você sabe o que são essas coisas? – O homem que estava pilotando o barco perguntou.

– Sim. – Týr lhe contou a mesma história que contou para mim algumas horas atrás.

– Entendi. Então estamos em guerra. – Ele disse por fim. – Meu nome é George, a propósito.

– Sou Leonard, essas são Thais e Týr. Espera... Como você pode ver a fada rabugenta?

– Porque eu deixei. Animal. – Týr respondeu resmungona como sempre

– Depois de tantas coisas que aconteceram, não me surpreende ver uma fada aqui. – George falou. – Então, pra onde estamos indo?

– Itália. – Falei. – Lá nós vamos pegar o trem e ir para Stonehenge.

– Por que Stonehenge?

– Longa história. É melhor que você não saiba.

– Bem, se vou com vocês, é melhor que eu saiba, não?

Olhei para Týr e ela me olhou. Nós dois estávamos com a mesma dúvida: como contaríamos nosso objetivo sem lhe revelar que eu podia me lembrar da minha vida na Terra?

– Desculpe, mas não podemos contar.

Ele ficou calado por um tempo. Quando a costa estava longe e não podíamos ver terra em nenhuma das direções, ele disse:

–Itália, ai vamos nós!

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