Capítulo 21

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Sinclair, naquele dia eu te xinguei de todos os palavrões que aprendi nesses anos de vida. Respirei fundo antes de voltar para a sala de aula, mas provavelmente minha cara parecia terrível porque todos os alunos evitaram contato visual durante todo o ensaio. Nos dias seguintes eu me empenhei em colocar todo o meu ódio no arquivo do computador em que eu fazia o livro de Goody ganhar forma. Escrevi mais cinco capítulos e eu estava odiando Faith com todas as minhas forças.

Passei o dia todo no escritório, mas no meio da tarde achei que seria melhor aproveitar as últimas horas de sol para correr no Central Park, não sei, eu apenas senti vontade de sair de casa. Hoje o céu está fechado e nublado, e durante todo o dia uma chuva fina caiu sobre a ilha. Vesti minhas roupas de corrida e me despedi da Sra. Thornhill que me olhou surpresa ao me ver vestida com roupas esportivas. Estava no elevador quando o meu celular vibrou no bolso no meu colete de corrida. Peguei o aparelho e sorrir ao ver quem era.

- Oi, Pai - atendi o telefone enquanto esperada o elevador me levar até o térreo.

- Olá, minha nuvenzinha de chuva - a voz um pouco rouca do outro lado da linha tinha um tom carinhoso e cansado - estou ligando para dizer que minha secretária confirmou a nossa reserva amanhã no Four Seasons para o seu café da manhã de aniversário. Espero que você não invente uma desculpa, Senhorita Wednesday Addams.

- Não vou, pai, prometo. Pensei que o senhor e a mamãe fossem preferir um almoço.

- Na verdade sim, mas hoje eu tive uma cirurgia de transplante de coração e eu quero acompanhar de perto essas primeiras quarenta e oito horas.

- Está com medo de rejeição?

- Esse medo sempre existe, mi corazón. Mas essa cirurgia foi complicada - ele respirou fundo no instante em que a porta do elevador abriu.

Sempre gostei de ouvir as histórias do meu pai, tanto as de hospital quanto as da clínica. Ele sempre falou com carinho dos seus pacientes, mesmo nunca mencionando o nome deles.

- O que houve?

- Quando ficamos sabendo da doação na madrugada, minha equipe levantou o nome de três pacientes que seriam compatíveis com aquele doador. Eu queria muito que fosse a vez de um deles, mas - meu pai respirou fundo novamente e pude sentir sua exaustão - não deu. O órgão não seria compatível com o corpo dele, isso me deixou arrasado. Queria muito ajudá-lo.

- O que tem esse paciente?

- Eu realmente tento não me envolver na vida dos pacientes, é muita carga para carregar, mas com esse foi impossível.

- O que tem a história dele?

- Nada que interesse a senhorita - meu pai respondeu tentando fazer piada - nos encontramos amanhã às nove? - Ele mudou de assunto e eu já estava no meio da calçada indo em direção ao Central Park.

- Claro, às nove estarei lá.

- Eu amo você, minha pequena Catrina.

- Também te amo, pai. Até amanhã.

Desliguei a ligação com um sorriso no rosto ao ouvir um dos apelidos que ele sempre me chamava. Catrina era o nome do esqueleto do dia dos mortos, representava uma mulher elegante e enigmática da alta sociedade, uma figura clássica da cultura em que cresci.

Eu sempre imagino como são os pacientes do meu pai, quais suas histórias, o que aconteceu com seus corações, de onde vinham seus doadores, quais as causas das mortes dos seus doadores. Será que algum dia o destino faria com que ele se cruzasse ocasionalmente no meio da rua com a mãe que perdeu o filho cujo o coração agora batia em seu peito? Ou se encontrariam na fila do mercado, e ela nunca imaginaria que o coração que a fez chorar quando escutou o som dos batimentos pela primeira vez, ainda preso em seu ventre em um feto ainda minúsculo, estava ali, vivo, batendo forte e saudável no corpo de outra pessoa. Se ela soubesse, será que ela abraçaria aquele estranho para sentir os batimentos novamente contra o seu peito, da mesma forma que sentiu diversas vezes enquanto tentava acalmar uma criança assustada em seu colo?

La Belladonna  (Wenclair)Onde histórias criam vida. Descubra agora