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A grande sala de espera em que Anis estava sentada parecia muito maior a cada segundo que se passava. O prédio comercial fervilhava de pessoas indo e vindo, ninguém parecendo notar que ela estava ali sentada.

Depois de fazer seu cadastro e receber um crachá com uma foto três por quatro improvisada com uma webcam da própria recepção, o recepcionista disse que ela deveria esperar sentada naqueles bancos até que a encarregada do Tetriz descesse para buscá-la.

Anis voltou a checar seu relógio de pulso preferido, de pulseira azul e visor quadrado, e resmungou algo ininteligível quando notou que já havia passado meia hora desde o seu cadastro. Ela voltou a olhar as redes sociais e fez uma careta para o viral em que aparecia quase nua na cafeteria, tentando tirar a blusa molhada.

– Isso virou uma praga - ela resmungou, denunciando mais um dos vídeos do Instagram para que a plataforma tirasse do ar. O óculos escuro escorregou um pouco para a ponta do seu nariz, mas ela não se importou de colocá-lo de volta no lugar.

– Anis Oliveira? - uma garota de uns dezoito anos estava parada na sua frente.

A franja da menina era curta demais, exibindo espinhas vermelhas na testa alta. Ela tinha aparelho com borrachas verde neon, unhas roídas e um colar de pedras coloridas em que o crachá da empresa pendia.

– Isso. E você é a Lorraine Salve - Anis conhecia o rosto da garota, porque ela costumava aparecer em alguns dos episódios do programa, sempre dando informações de última hora sobre os temas. - Você é a garota das pesquisas do Tetriz.

A menina enrubesceu e sorriu. Ela parecia muito mais simpática do que suas aparições no programa deixavam claro.

– Me pediram para te buscar e acompanhar até o seu camarim.

– Meu camarim?

– Não te contaram? - Lorraine ficou confusa e se encolheu. - Acho que esse é o episódio mais aguardado da nova temporada. Temos trezentas mil pessoas esperando, assistindo o esquenta de hoje.

– Trezentas mil? - a voz de Anis se ergueu um pouco, suas mãos começaram a suar e ela fez uma careta de dor. As coisas ao seu redor giraram. - Isso só pode ser um pesadelo. É muita gente. Eu sei que é.

– Bom, agora você é um fenômeno viral - Lorraine fez sinal de positivo com as duas mãos, como se aquilo fosse ótimo. - Eu até comprei o seu livro em um sebo. "O elo de Satã" é muito interessante. Não imaginei um romance entre um padre e um pastor antes de ler seu livro.

– Você gostou?

– Está brincando? - Lorraine se abaixou ao lado de Anis, como se fosse lhe segredar alguma coisa. - Eu comprei de curiosidade, mas fiquei empolgada com a infâmia da coisa. Algo atrevido o bastante.

– Deus! Não era para parecer isso - Anis esfregou os olhos, se esquecendo que tinha passado uma camada fina de lápis de olhos cor de carvão. Ela se tornou um filhote de panda bem rápido. - Eu fico tão magoada. Era para ser um romance sobre o amor vencendo os preconceitos da fé e isso tudo. Agora você já é a milésima pessoa que me diz isso.

– Quando eles ficam sozinhos naquele banheiro do Vaticano... Achei que fosse um pontapé discreto para o sexo.

– Bem, era... - Anis voltou a esfregar os olhos. - Mas não era só isso. Não quero que meu livro pareça algo tão vazio.

– Sexo nem sempre é vazio - Lorraine corou quando Anis a olhou nos olhos. - Sendo bem sincera, eu concordo com você. Eu assisti quase todo o seu discurso. Alguém me enviou o vídeo e aí toda a equipe já estava vendo. Foi uma conversa acalorada no grupo da redação. O WhatsApp não parava de apitar.

– Você concorda comigo, mas não acha que sexo é vazio? - Anis ergueu uma sobrancelha para ela. - Não parece promissor seu argumento.

– Ah, bom, eu só quero dizer que é algo que vale ser debatido - Lorraine deu de ombros. - Eu acho que a maioria dos livros de hoje em dia estão mesmo focando nas coisas erradas. Digo, muito mesmo. E as capas desses aplicativos de leitura... Também concordo sobre a autora de "A grande aposta do Kpop".

– Obrigada?

– Ah, por favor. Aquela garota não é mais vazia porque não consegue. Se ela fosse um pote, nem o ar estaria dentro - Anis riu pelo nariz, roncando um pouco, mas ficou séria quando Lorraine chegou perto demais. O hálito dela estava cheirando a Sprite. - Chamamos ela para participar do debate, mas ela disse que nosso programa não é o tipo de coisa que ela quer colocar no currículo.

– Ela é mesmo uma vadia então. Essa é a prova de que ela não escreve pensando na arte.

Anis se ergueu, o que fez com que Lorraine se afastasse um pouco dela. Ela passou a mão na cabeça, respirou fundo e caminhou para frente, passando por Lorraine em direção às catracas de entrada.

– Só vamos lá, terminar com isso logo e ensinar ao mundo o que é literatura.

– Isso! - Lorraine bateu palmas animadas quando ouviu isso. Ela seguiu Anis de perto. - Vamos nos vingar daquela coisinha.

Assim que passaram pelas catracas, as duas portas da frente do saguão se abriram. Dois homens altos e largos, vestindo roupas pretas, entraram olhando para todos os lados. Atrás deles, mexendo em um celular, um homem usava óculos de Sol marrom, calça preta colada e coturnos. A camiseta dele era estampada com uma imagem de um grupo musical.

Ele pegou seu crachá de autorização com uma garota que estava sentada perto de Anis, mas que não tinha sido interessante o suficiente para chamar a atenção.

Os dois homens, a mulher e o tal cara com a camiseta de banda passaram pela catraca de uma vez só, cada um em uma portinhola. Anis e Lorraine estavam vendo a cena já perto dos elevadores.

O grupo parou atrás delas, o elevador abriu, elas entraram e todos entraram atrás. O homem que usava a camiseta de banda ergueu o óculos para o topo da cabeça. Ele sorriu de forma gentil para ambas.

– Hi. How is it going? - ele se virou para frente e voltou a prestar atenção no seu celular.

Anis puxou a manga da camiseta de Lorraine, apontou para o grupo na sua frente com o queixo e arregalou bem os olhos.

– O que você quis dizer com "se vingar"?

– Acho que esse é um bom momento para dizer que é a primeira vez do grupo dele no Brasil, e que sua live chegou ao conhecimento da equipe de publicidade deles.

– Eles são asiáticos. Como viram e entenderam o meu vídeo surtando? - Anis arregalou ainda mais os olhos na direção de Lorraine.

– Ao que tudo indica, ele é amigo de um amigo de um amigo de um ator famoso lá na Coreia. E o tal ator é namorado de uma brasileira.

– É O QUE, BICHA? - Anis gritou, em completo choque, fazendo o grupo se virar para encará-la. O homem de camiseta de banda foi o único que não se moveu, nem mesmo deixou de olhar para o seu celular. - Hum... Sorry?

Eles se viraram para frente, desconfortáveis com a conversa em um idioma estranho, e ainda mais incomodados com o grito que Anis tinha dado.

– Está me dizendo que ele simplesmente ficou sabendo do vídeo e aceitou vir ao programa?

– Não. Claro que não - a porta do elevador abriu, o grupo todo saiu e sumiu para a direita. Anis respirou aliviada, até que Lorraine andasse um pouco e se virasse para encará-la da porta do elevador. O sensor de peso da porta apitando como um louco. - Foi ele mesmo que se propôs a participar do programa depois que soube que o episódio seria sobre o famoso livro da fanfic sobre ele.

Lorraine estendeu a mão para Anis, mas tudo que ela poderia fazer naquele momento, era ficar estática no centro da caixa de metal. Pela milésima vez na semana, ela sentiu que sua vida só iria piorar.

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