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Anis balançou sua bolsa na frente do corpo, olhando para as pedras da calçada com um interesse maior do que seria indicado. Quando chegou até a portaria do prédio de Martin, ela encarou a torre baixa por um tempo longo demais. O porteiro acenou para ela do seu posto ao lado do portão de entregas.

Ela se aproximou dele sorrindo, tentando parecer normal e feliz.

– Ele estava muito bravo hoje, quando saiu para correr? - a voz dela saiu como um fio, perto demais do senhor que sempre a cumprimentava.

O senhor Dailson era um senhor de fato. Os cabelos brancos escassos no topo da cabeça, o óculos de lentes e armação grossas, as mãos de quem já trabalhou demais na vida. Ela gostava de como a voz dele parecia estar sempre pronta para fazer com que todos se sentissem bem.

– Ele não saiu para correr - Dailson esticou o corpo para frente, sussurrando com Anis pela grade. - Ele saiu com a bicicleta e deu cinco voltas no quarteirão. A senhora Sukey foi a única que foi correr hoje.

– Ele está furioso comigo - Anis esfregou os olhos. O resto de maquiagem que tinha transformado-a em um panda, começando a desmanchar nas pontas dos seus dedos. - Eu vacilei feio desta vez, Dailson.

O senhor voltou a se acomodar no seu lugar e deu uma tossida de alerta. Anis se virou e encontrou Sukey a encarando, com seu sorriso de diversão aparecendo no canto da boca. O goldendoodle deles, que se chamava Lady Di esticou o focinho na direção do rosto de Anis.

Sukey era a alma gêmea de Martin, e Anis amava isso nela. Ela era duas cabeças mais baixas que ele, o cabelo estava sempre cortado e alinhado em um tipo de pixie que não combinava com seu rosto. Os olhos estreitos escondidos por trás de pálpebras lisas, os dentes pequenos e um tanto infantis. Anis a abraçou, porque sentia que ela era mais da sua família do que Martin.

– Me proteja dele - Sukey deu tapinhas nas costas de Anis, achando engraçado seu desespero. - Eu sei que ele deve ter surtado e ralhado não sua orelha sobre ontem. Eu sei. Como você pode me ajudar?

– Eu posso te oferecer meu chá de hibisco - Sukey riu quando Anis se afastou dela com uma careta. - Eu sei que você não gosta, mas isso o acalma. Vamos torcer para ele aceitar te olhar sem sutar.

Anis seguiu Sukey até dentro do condomínio, depois subiu com ela pelo elevador, ambas em um silêncio confortável. Quando a porta do apartamento de Martin e Sukey se abriu, ele ergueu os olhos para ela e depois voltou a ler.

Sukey colocou o Lady Di no chão e deu um tapinha no ombro de Anis. Martin continuou olhando para o seu livro, como se ela não estivesse ali.

– Vou fazer um bule de hibisco para nós. Tenho certeza de que isso vai aliviar o clima.

– Não tem nenhum clima estranho - Martin respondeu, virando a página e fungando um muco que não existia. - Estamos todos muito bem, em um clima adorável.

– Não seja tão pirracento - Anis andou até ele e se deitou no chão, o rosto encarando a capa do seu livro de ponta cabeça. - Lembra quando éramos crianças e íamos até a tia Magnólia? Se lembra?

– Não começa...

– Você sempre quebrava alguma coisa. Teve até aquela vez que você quebrou a pedra da beirada da piscina - Anis segurou um riso. - Éramos crianças felizes. Eu ficava escrevendo na máquina da tia e você lia tudo, com o antigo cachimbo do vovô pendurado nos lábios.

– Eu não estou te ouvindo.

– Está sim - Anis estendeu a mão e apertou o tornozelo de Martin. Ele ergueu os dois pés, cruzando-os sobre a poltrona em que estava sentado. - Você não ficava bravo comigo quando íamos lá. Você não ficava bravo nunca. Seu autocontrole sempre foi sua maior qualidade.

– Eu acho que era mais gratidão por vocês estarem me criando - ele abandonou o livro na mesa de centro, colocou os pés no chão novamente e se inclinou na direção dela. - Doeu assistir aquilo ontem. Dói sempre que eu te ouço dizer essas coisas.

– Achei que você fosse um exímio apreciador da sinceridade - Anis tentou sorrir para ele.

– Não tem graça - Martin se ergueu e lhe deu as costas. Ele deitou no chão, alinhando sua cabeça com a dela, seu corpo alinhado na direção contrária a dela. - A Amavi me ligou hoje. Ela está no Monaco. Tem noção disso? Ela viu a live de lá, porque sabia que você precisava de apoio. E o que eu disse para ela?

– Que eu sou adulta, apesar de ser a prima caçula, e que vocês só precisam me dar amor?

– Também - ele riu um pouco, mas suspirou com cansaço antes de continuar. - Eu disse que ela não precisa voltar para casa. Eu disse que vou cuidar de tudo. Eu também disse que vou fazer você ser feliz, não importa o que aconteça.

– Eu sou feliz.

– Você tenta - Martin virou seu rosto e encarou o perfil de Anis. Ela estava com os olhos cheios de água, e ele sorriu de uma forma triste. - Eu odeio o fato de você não ter tido todas essas experiências normais, porque você tem direito tanto quanto qualquer outra pessoa. E eu odeio ainda mais que você seja uma autora que não teve reconhecimento, enquanto vemos lixos serem vendidos aos montes só porque a autora escreve livros ruins para adolescentes sem senso crítico literário.

– Martin...

– Estou sendo sincero - ele voltou a olhar para o teto. - Não me importa se a vida foi injusta com você. Sinceramente. Eu não ligo a mínima. Mas não quero ver as pessoas te julgando, atacando ou falando sobre isso. E não quero que você não se ame de verdade só porque outra pessoa não fez isso até agora.

– E nem vai fazer - Anis completou o silêncio que ele deixou, erguendo as mãos e enxugando as lágrimas. - Isso é o que você ia dizer. Que ninguém vai me amar, porque eu estou velha demais para ter as primeiras vezes básicas, como andar de mãos dadas e dar um beijo. E a verdade é que nenhum cara quer ficar com uma mulher como eu, porque nós damos medo. Não ter experiências faz eles acharem que vamos nos apaixonar e querer viver juntos para sempre.

– Nem todos os caras são uns babacas - Martin tentou ponderar. - Eu só não quero que você beba em público e dê armas para que as pessoas possam esfaquear seus pontos fracos.

Anis usou as mangas da camisa emprestada que estava usando para enxugar os olhos. Ela se ergueu no minuto em que Sukey entrou na sala carregando uma bandeja completa para o chá.

– Eu só vim aqui dizer que estou bem. Eu não me machuquei depois do tombo, então está tudo sob controle - ela sorriu para Sukey como um pedido de desculpas. - Posso pedir para vocês assistirem a uma live extra hoje? Eu decidi que tenho coisas a dizer para todo mundo.

Ela fechou a porta do apartamento enquanto Sukey a encarava, ainda segurando a bandeja nas mãos. Martin se ergueu e apanhou o livro na mesa de centro, só para jogá-lo com força no chão. Ele foi até o quarto deles e bateu a porta.

Sukey abandonou a bandeja na mesa de centro, recolheu o livro e alisou a capa. "Tartarugas até lá embaixo" era o livro que Martin lia quando sentia que era um péssimo primo para Anis.

Enquanto descia os quatorze andares de escada, Anis se permitiu chorar e fungar alto. Aquela escada de emergência daquele prédio cheio de velhinhos era o único lugar que ela se sentia segura naquele momento.

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