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Lorraine estava sentada no sofá que servia de canto alemão na casa de Anis. O tecido azul e florido era antigo, mas estava intacto apesar do tempo de uso e de todas as mudanças que Anis já tinha feito. A mesa de jantar de madeira estava arrumada com um par de jogo americano estampado com patas de gatinhos, duas taças furta-cor e duas garrafas de vinho rosé.

– Eu amei o seu gato - Cheshire estava esparramado no sofá da sala, encarando alguma coisa no chão da casa. - Como você conseguiu comprar ele?

– Eu o resgatei e adotei - Anis colocou duas travessas grandes na mesa, cheias de salgadinhos gordurosos que elas tinham comprado no caminho para casa. - Ele estava miando dentro de um esgoto. Acho que as pessoas o acham feio demais. Então eu tirei as grades do bueiro, estiquei metade do corpo para dentro e o resgatei.

– Que horror! - Lorraine olhou para o gato com novos olhos.

– Ele estava com bastante sangue no rosto e uma inflamação no olho direito. Corri até o veterinário que fica na divisa da cidade natal da minha mãe - Anis foi até o sofá e se sentou ao lado de Cheshire, fazendo um carinho na barriga dele. O gato estendeu o corpo e fechou os olhos, ronronando baixinho. - Usei o resto do meu dinheiro extra para cuidar dele. Mas não me arrependo.

– Tinham tentado matar ele? - Lorraine parecia em choque, mas algo em seu tom de voz denunciava a raiva pela situação.

– Provavelmente - Anis puxou Cheshire para o seu colo e acariciou a sua cabeça. Ele se encolheu como uma bola de carne e voltou a ronronar, ficando feliz com o carinho. - Ele estava com dois cortes enormes nos cantos da boca. O médico disse que alguém tinha tentado abrir a boca dele como o Coringa. Isso me deixou tão irritada. Todo mundo disse que o nome dele deveria ser esse, inclusive. Mas eu gosto de Cheshire. É uma área da Inglaterra e, vista de cima, parece um gato sorrindo.

– Não é o nome do gato de "Alice no País das Maravilhas"?

– É. E é justamente por isso - ela se ergueu, levando Cheshire consigo até o sofá do canto alemão. Lorraine deu espaço para que ela se sentasse, esticou a mão e acariciou a cabeça dele, enquanto Anis passava as pontas dos dedos pelo seu corpo. - Eu acho que o Cheshire é um gato e tanto. Ele é o mais racional de toda aquela história, mesmo que pareça que não. E ele também é um sobrevivente, já que a Rainha de Copas nunca o encontra. Combina com ele.

Elas ficaram em silêncio enquanto acariciavam o gato, que estava relaxado e feliz com a atenção. Ele esfregou a cabeça no pulso de Lorraine e depois piscou os olhos vagarosamente. Anis o puxou e lhe deu um beijo na cabeça.

– Ele é a minha principal companhia desde que minha família se mudou para Curitiba - como se tivesse entendido a conversa, Cheshire inclinou o corpo para o chão e desceu do colo dela, indo se aninhar nos seus pés. - É bom ter ele por perto.

– Eu entendo. Meus pais moram em Salvador e eu me sinto muito sozinha em São Paulo - Lorraine enfiou um Doritos na boca. Ela cobriu a boca para poder conversar de boca cheia. - Eu vim fazer rádio e TV aqui em São Paulo, por causa das oportunidades, mas descobri que essa é uma cidade solitária.

– Estamos sempre rodeadas de pessoas, mas sempre solitárias - Anis apontou a parede atrás delas com o polegar. - A minha vizinha da frente tem uma história desse tipo também, mas no caso dela foi abandono. E ela me contou que a antiga inquilina da casa tinha uma história tão triste quanto. Acho que ser mulher fica muito mais difícil quando se vive em São Paulo.

– Como diria o Criolo: "Não existe amor em SP" - Lorraine apontou para a tela do computador de Anis, indicando a tela de fundo que era uma paisagem de São Paulo. - Esse lugar está morto por dentro. Desde os canos submersos nas guias até as pessoas que sobem e descem.

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