Ó doçura da vida: Agonizar sob a pena da morte, em vez de morrer de um só golpe.

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Jeff

Em uma manhã, em que o Diabo batia em sua mulher, me vi livre do hospital. Minha mãe, persistente em sua dedicação, sorriu ao me ver fora da cama, caminhando como costumava fazer.

— O médico disse que você melhorou rápido. Mas, por via das dúvidas, vai ficar conosco por enquanto. — Ela me ajudou a entrar no carro, radiante. — Não pode voltar para casa assim. Aliás, uma ótima surpresa te espera.

O antigo prédio de apartamentos e suas escadas pichadas permaneciam de pé. Ao adentrar o local em que passei minha adolescência e pisar os pés na sala de estar tradicional, me deparei com um senhor sentado na poltrona de couro, com os joelhos cobertos por uma manta. Alheio a minha presença, seus olhos fixavam-se na estante, franzidos em uma careta de confusão, esmiuçavam as antigas fotografias que ali repousavam. Eu teria franzido a testa também, se não soubesse exatamente quem ele era.

— Aí está sua surpresa, querido. — anunciou minha mãe, surgindo logo atrás de mim.

Ela se aproximou do homem e tocou-lhe o ombro. Percebi uma hesitação em seu gesto. Não havia um cachorro deitado aos seus pés; Morpheu se fora havia muito tempo. Meu avô não era mais o homem robusto da minha infância; em seu lugar, apresentava-se um idoso calvo, magro e frágil, com o ar de um doente em fase terminal.

— Sou eu, vô — disse, me acomodando no sofá ao seu lado. — Jeffrey. Seu neto.

O velho me contemplou débil, como se tentasse entender onde estava. Em seu rosto, não notei nenhum brilho imediato, nenhum sinal de animação ou do familiar amor que no passado havia aos montes. Nas tardes ensolaradas, ao chegar da escola, de mãos dadas com minha avó, eu o encontraria ativo e saudável, fazendo reparos pela casa, andando de um lado para o outro com sua caixa de ferramentas, trabalhando no celeiro ou dando de comer aos animais. Antes, o velho Joe me pegaria nos braços e me daria um de seus abraços de urso, tão fortes que seria difícil até de respirar. Agora, meu avô já não podia mais nem levantar para fazer isso.

— Vô — chamei. — Como você está? Você se lembra de mim?

Ele espremeu a vista conforme sua testa se franziu, tentando se lembrar de onde me conhecia, quem diabos era o homem deformado sentado ao seu lado. Me perdi no cinza dos seus olhos. As íris, um dia azuis como o mais límpido céu, tornaram-se apagadas. A demência estava lentamente atrofiando seu juízo, as memórias eram borrões absorvidos pelo tempo, esquecidas e condensadas na massa encefálica desse cérebro doente, murchando como uma maçã oxidada. Um dia, eu fora seu neto, hoje sou só um estranho. Jeffrey estava próximo a sua orelha, encarando-me com olhos vermelhos.

— Alice... Mary Alice.

— Sim, a vovó.

— Minha mulher, Mary Alice. — Ele passou em revista os cantos da sala. — Cadê ela?

— A vovó morreu alguns anos atrás, vô — relembrei-o, alisando carinhosamente seus braços para esquentá-lo. Fiquei chocado com os ombros descarnados que senti por baixo da camisa. — Mas ela nunca deixou de amar o senhor.

Assim, um grito gutural de sofrimento escapou de sua boca e me assustei com a crise repentina de choro que sucedeu em meu avô. Minha mãe, agora da cozinha, correu imediatamente para a sala com um copo d'água nas mãos.

— Por favor, Jeffrey, não fale sobre sua avó. Ele não se lembra, mas sente falta dela — Minha mãe pegou a caixa de lenço em cima da mesa e ofereceu para seu pai. — Era melhor não tê-la mencionado. Não faça mais isso.

Minha mãe foi com a mão às costas do pai, buscando acalentá-lo. No entanto, vovô Joe se desvencilhou de seu toque atencioso, empurrando sua filha com o pouco da força que lhe restava.

Before and After (HIATUS)Onde histórias criam vida. Descubra agora